A angústia de escrever para ninguém

Há algum tempo, eu abri um formulário para receber perguntas e transformar as respostas em textos.

Essa semana, decidi pegar a pergunta do Fábio Batista.

“Me angustia muito a ideia de escrever pra ninguém ler. Pra mim, pelo menos, quem escreve e publica, deseja em alguma medida ser lido e, em cima disso, vem também o anseio por me tornar um profissional da escrita. Isso me angustia muito.

Você também se angustia com isso? Como lida com a possibilidade (bastante concreta pra quase todos nós) de o que escrevermos morrer sem ver terra firme num leitor?” —Fábio Batista

A escrita é uma arte colaborativa

Recentemente, li uma coleção de ensaios da Ursula K. Le Guin. Caso você não conheça, ela é autora de livros como “O feiticeiro de Terramar”, “A mão esquerda da escuridão” e “Os despossuídos”. Tenho a impressão de que ela não é tão popular assim no Brasil, mas para quem gosta de fantasia e ficção científica, ela é uma rainha.

O livro em questão é “The Wave In The Mind: Talks and Essays on the Writer, the Reader, and the Imagination” (A onda na mente: falas e ensaios sobre o escritor, o leitor e a imaginação). Como o título dá a entender, lá tem alguns belos textos onde ela fala da atividade da escrita. Tem de tudo um pouco, desde o processo de pesquisa, de onde ela tira ideias e até passa por algumas dicas de edição.

Nesse bolo, uma das coisas que ela diz é que a escrita só tem a sua fruição quando atinge um leitor.

Ela diz mais ainda, que diferente de outras mídias, como o cinema, a escrita é uma atividade que ocorre ativamente na imaginação do leitor. Você escreve, sim, mas não tem como saber exatamente o que o leitor está construindo em sua mente, uma vez que ele começa a decodificar suas palavras. O leitor, enquanto lê, está criando tanto quanto você quando escreveu.

A história é uma arte colaborativa. A imaginação do escritor trabalha em conjunto com a imaginação do leitor, convidando-o a colaborar, a preencher, a dar forma, a trazer sua própria experiência para a obra. A ficção não é uma câmera, nem um espelho. É muito mais parecida com uma pintura chinesa — algumas linhas, alguns borrões, um grande espaço em branco. A partir disso, criamos os viajantes, na névoa, subindo a montanha em direção à pousada sob os pinheiros.”

Talvez, por isso, é de se entender a frustração quando não conseguimos chegar em alguém. É como gritar no escuro e não obter nenhuma resposta.

Nesse sentido, entendo demais essa aflição. Também sinto isso. No entanto, pelo lado do processo criativo, acho que se fixar demais em buscar uma audiência pode ser bem contraproducente.

A insatisfação é uma linha móvel

Vamos dizer que você quer mesmo seguir essa rota, escrever o que os algoritmos gostam e escalar essa montanha até “chegar lá” — seja o que “lá” signifique para você.

A impressão que me dá, é de que a própria dimensão do que é “escrever para ninguém” também é variável. O que “ninguém” significa pra você não é o mesmo que “ninguém” significa pra mim.

Pra citar um exemplo, eu comecei a escrever em público pra um blog que, no auge, tinha milhões de visitantes todo mês. Era fácil um texto chegar na faixa das centenas de comentários no próprio site. Quando estourava no Facebook (sim, faz tempo), descambava pros milhares de likes e comentários. A impressão de estar sendo visto era considerável.

Não vou negar que, durante um certo tempo, era muito bom quando algo circulava pela internet. Porém, em poucos meses com essa realidade como rotina, quando o texto não repercutia nesse nível, eu sentia como se ninguém me lesse e ficava bastante desanimado.

Hoje, se comparar com os números que eu movimentava naquela época com aquele projeto, eu escrevo “pra ninguém”. Ainda assim, quando um texto meu chega a ter dez comentários no Substack, eu dou pulos de alegria. Acho um milagre, é lindo.

Ou seja, tem algo sobre essa linha da insatisfação que é móvel e não deveria ser uma base pra motivação, pois você um dia pisa nela e no outro não tem nada pra pisar.

Cultivando a vontade de viver

Quando paro pra pensar no contexto atual para escritores, é quase como se não houvesse mais razão para escrever. Vivemos num mundo multimídia, o discurso é de que tudo precisa ter vídeo, narração, trilha sonora, luzes e animações. Está tudo extremamente complexo, difícil de fazer, ainda mais considerando que sou um adulto cheio de outras demandas. O aluguel está aí e não me deixa mentir.

Além disso, existe um oceano de conteúdo. O que não falta são pixels coloridos e piscantes. Estou disputando atenção com tudo isso. Em resumo, ninguém quer ler o que tenho pra escrever. Ninguém tem tempo e nem disposição.

E, pra piorar, os algoritmos também não querem entregar minhas coisas, afinal, quem sou eu na fila do pão? Texto não é legal, é o que essas plataformas querem que a gente acredite.

Ainda assim, tem gente por aí escrevendo, criando. Fazendo arte.

Sempre lembro da fase da infância e adolescência, quando a criatividade explode e dá vontade de fazer mil coisas. Uma criança mal tem a dimensão de que existe um mundo lá fora. Ela escreve, desenha, pinta e canta porque quer escrever, desenhar, pintar e cantar.

Com certeza, não dá pra ignorar as responsabilidades e desafios que a vida traz. Mas em um certo nível, é importante manter esse espírito infantil no que diz respeito às nossas atividades criativas.

Recentemente, escrevi um texto falando da abordagem criativa do Hayao Miyazaki e ele fala de algo nessa linha:

“Digamos que um projeto foi decidido e você se inspirou por algo. Um certo sentimento, uma pequena faísca de emoção — seja o que for, deve ser algo pelo que você sinta atração e que queira retratar. Não pode ser apenas algo que os outros possam achar divertido; deve ser algo que você mesmo gostaria de ver.

Na minha experiência, buscar reconhecimento, carinho, atenção, etc, por meio da arte, escrita ou qualquer outra atividade, é uma postura frágil, carente, vacilante e traz apenas os resultados correspondentes.

Minha aposta é que é uma situação similar a um date no qual você sai com uma pessoa e percebe que ela está montando uma persona para te induzir a topar um relacionamento com ela. Essa pessoa está faminta para cativar você a qualquer custo, não por você, mas porque você é um meio para ela conseguir o que quer. Não é uma vontade de conexão leve, amorosa. É um desejo pesado, estranho. Se você tiver um pingo de autoconsciência, vai perceber que algo está errado e vai fugir.

A arte é mais ou menos assim.

Antes de pensar em quantas pessoas vão ver, a gente precisa ter vontade de criar algo. É necessário um entusiasmo genuíno. É importante que seu olho brilhe pela mera ideia de sentar para colocar palavras uma depois da outra. E a graça precisa estar nisso.

O complicado é que isso acaba gerando uma conexão que torna os textos fascinantes e fazem as pessoas compartilharem com os amigos, o que traz mais pessoas e, pouco a pouco, faz com que você desenvolva uma audiência. Mas no minuto que você tenta, alguma coisa quebra e seu texto fica frouxo, as pessoas simplesmente não se interessam.

Quando você efetivamente consegue limpar a sua mente dessa preocupação em agradar, em crescer, em conseguir algo que não seja a criação em si, a magia acontece. Você desenvolve uma potência, uma energia que flui e traz brilho no olho, alegria que se projeta de dentro pra fora. A vida ganha um sabor especial.

Cultivar essa vontade de viver é o que realmente importa — ao menos, pra mim.

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