Como a IA me ajudou a resgatar a escrita entre as frestas
Eu amo pesquisar sobre as rotinas criativas de grandes escritores.
A Ursula K. Le Guin tinha 45 minutos após acordar só para pensar e, depois de um bom café da manhã, sentava das 7:15 até meio dia, escrevendo sem parar.
Stephen King afirma caminhar quase 6km todos os dias, o que deve dar aí uma hora e meia só para refletir. Depois, ele senta e escreve por duas a três horas. No resto do dia, relê, edita e ajusta o que fez antes.
Charles Dickens escrevia por 5 horas e depois caminhava por 3 horas, todos os dias.
A própria descrição dessas rotinas parece obra de fantasia em 2025. Como a pessoa que tem um trabalho e, muitas vezes, precisa cuidar da casa ou dos filhos, arranja tempo pra esses momentos de escrita, contemplação e maturação? Parece um beco sem saída para nós, seres consumidos por demandas infinitas — as reais e as criadas na base da pressão autoimposta. Simplesmente não dá.
O tempo para as coisas
Eu sou uma dessas pessoas. Comprimido pelo dia-a-dia, apesar de ter grandes ambições criativas. Eu quero escrever um livro, fazer vídeos, desenhar, tirar fotografias. Mas a vida adulta veio e tomou meu bem mais precioso: o respiro que só o tempo pode proporcionar para a criatividade.
Pra piorar, meu ofício favorito é a escrita. Desenvolver um pensamento exige tempo. Escrever vai além de simplesmente teclar palavras: é preciso uma brecha, um intervalo que permita organizar as ideias. O texto — um bem acabado, ao menos — só surge quando há um ambiente propício. O tempo é esse ambiente onde ele pode crescer e se desenvolver.
Recentemente, li o livro “Em águas profundas”, do David Lynch, coisa que vem ressoando aqui dentro desde então. Lá, ele fala algo que ficou comigo: “se você está preocupado porque 30 minutos depois estará em algum lugar, não há como criar. Por isso, a vida artística implica liberdade; é preciso tempo para que as coisas interessantes possam acontecer. Nem sempre há muito tempo para as outras coisas.”
O ideal da criatividade contemplativa
Uma vez, durante meus estirões obsessivos, eu entrei no blog do Austin Kleon e encontrei num post antigo um trecho de uma fala da Eleanor Coppola — mãe da Sofia Coppola e esposa do Coppola pai —, descrevendo como a experiência criativa das mulheres era diferente da dos homens. Os artistas homens vivem sob esse ideal de terem seus estúdios, seus santuários criativos, onde podem contemplar e criar. As mulheres, não.
“Você faz arte em intervalos curtos de 20 minutos, sem enrolação. Lembro uma vez que fui visitar Francis em sua sala de trabalho: ele tinha todos os lápis alinhados, o café espresso pronto, um ritual completo para mergulhar em si mesmo e no trabalho. [No caso das mulheres] não havia tempo para esse ritual de preparação! Você simplesmente entrava no clima, aproveitava 10 minutos e fazia três linhas do desenho — ou o que desse para fazer. Era diferente da forma como os homens trabalhavam. E era assim que as mulheres conseguiam realizar seu trabalho.”
Talvez por ter sido obrigado a trabalhar muito cedo — e ter sido criado pela minha mãe — eu empatizo mais com essa experiência do que com a figura do artista imerso na sua arte. Minha vida criativa, principalmente depois que entrei na faculdade e precisei trabalhar, foi permeada pela necessidade de equilibrar mil pratos, escrevendo no ônibus, escondido na biblioteca entre uma aula e outra, ensaiando com a banda tarde da noite — coisa que nem se compara a ter filhos para cuidar.
A IA para não desperdiçar o tempo da escrita
Até hoje, é desse jeito. Cada vez mais, os compromissos vão tomando a agenda. O problema é que, sem espaço para contemplação, de fato, algo fica perdido pelo caminho. A imersão traz frutos, não dá para negar.
Mas, como sabemos, muitas vezes é isso: ou cavamos esse tempo na força ou sobra desistir. O problema é que, pra muita gente, a escrita é tão indispensável quanto o próprio oxigênio.
Sendo assim, não existe outra alternativa a não ser encontrar estratégias para aproveitar ao máximo esses pedaços de tempo. Foi assim que eu comecei a experimentar com a IA.
Eu tenho a impressão de que uma boa parte da aversão que muitos escritores têm à mera ideia de usar IA no seu processo de escrita vem de um desconhecimento sobre como isso poderia ser feito. Paira no ar esse entendimento de que “usar IA” é igual a “colocar uma máquina pra escrever no seu lugar”, mas na prática não é assim — para além do hype, uma das coisas que os modelos de linguagem como temos agora não fazem lá tão bem é, justamente, escrever.
Perdido, tentando não desperdiçar o pouco espaço que eu tinha para criar, entrei em processos de brainstorming com o ChatGPT, com resultados iniciais até razoáveis. Eu vi um potencial, mas de fato, faltava entender como utilizar melhor o que aquilo poderia me proporcionar.
O processo criativo assistido por IA
É claro que utilizar as palavras da IA estava fora de questão pra mim. Com esse limite estabelecido, decidi tentar explorar a ferramenta de forma criativa. Quais outros usos eu poderia fazer, que não envolvesse copiar e colar o conteúdo de lá?
Primeiramente, é importante entender o que modelos de linguagem podem oferecer: uma média estatística do que está disponível na internet. Por definição, essa modalidade de IA é uma máquina de clichês, uma enciclopédia do óbvio. É justamente criado para nos fazer entender o geralzão do que se pensa a respeito de algo.
Pode parecer que estou diminuindo a ferramenta, mas muito pelo contrário. Isso é bem incrível!
Como sabemos, o processo criativo tem, basicamente, duas etapas. Não é diferente na escrita. Em uma, nós divergimos, expandimos. Na outra, nós focamos, convergimos.
Rick Rubin diz no livro dele, O Ato Criativo que, nessa primeira fase, nós buscamos inspiração, pesquisamos, experimentamos. Coletamos o que ele chama de “sementes”.
Na segunda etapa, nós nos comprometemos, organizamos, construímos aquilo que veio se apresentando na etapa anterior.

Todo processo criativo vai ser descrito de formas diferentes por cada autor, mas se você buscar a essência, vai notar que todos estão falando mais ou menos da mesma coisa. Um eterno ciclo entre o pensamento convergente e o pensamento divergente.
Então, imagina que o ChatGPT — DeepSeek, Claude.ai ou qualquer outro modelo da sua preferência — tem esse papel como um dicionário de ideias previsíveis.
Você pode, então, começar a sair do lugar-comum. Pode subverter essas ideias, seguir em outras direções, propor o contrário ou até incorporar de forma humorística. Tudo vai depender da criatividade e da intenção narrativa.
O segredo está em como você vai usar o que o modelo oferece. Essa abordagem pode ser um excelente exercício para soltar a imaginação. É como uma brincadeira, um desafio de tentar ver o familiar sob uma nova perspectiva.
No meu processo, fui descobrindo essas diferentes maneiras de encaixar a IA quando necessário. Percebi que dava para fazer brainstorming, me estimular com variações de uma ideia, alternar a perspectiva para ver se algo muda na forma de ver o pensamento, experimentar variações de tom, destacar pontos de revisão, checar se o que foi escrito está coerente.
Tomando como exemplo esse próprio texto, eu desenvolvi tudo o que existe desse subtítulo, menos esse parágrafo que você lê agora. A IA me alertou para o fato de que não tinha nenhum exemplo prático — coisa que eu não estava muito interessado em adicionar. Pra completar, ela sugeriu uma estrutura de parágrafo que eu detestei, mas depois de levantar para buscar um café, eu percebi que a própria dinâmica daquele momento serviria como uma forma de exemplificar esse uso na prática. Agora, sim, estou satisfeito.
Entender como usar a IA no seu processo, ao contrário do que muitos podem fazer parecer, demanda bastante do seu conhecimento de escrita. Saber qual ideia soa bem e qual é só mais do mesmo pede uma intuição que vem justamente com a experiência.
A IA não oferece soluções definitivas, não é oráculo mágico. Mas, sim, ela pode ser um ótimo começo. O ponto não é usar a solução proposta pela ferramenta, mas sim, pensar nela como uma parede com a qual você faz um ping pong de ideias.
É quase como pedir a opinião de alguém que lê seu texto. Não é tanto para usar a ideia da pessoa, mas sim, pelo fato de que a mera discussão já é um estímulo que ativa o pensamento criativo. Claro que uma IA não é o mesmo que uma pessoa, mas não deixa de ser uma maneira de colocar ideias em movimento quando não há outras opções ideais ao alcance.
Não é o ideal, mas é o possível
Algumas vezes, tenho a impressão de que a proliferação de certos ideais acabam só por excluir mais ainda alguns grupos do fazer criativo. Eu fico bastante revoltado quando penso em quantas pessoas gostariam de escrever mais, porém, se veem reprimidas por se julgarem ou acharem que alguma prática que adotam possa ser mal vista.
Eu me vejo nisso e fico pensando sobre como a vida adulta continua tentando matar minha escrita. Dói? Sim, certeza. Mas a criatividade é um defunto que eu insisto em reanimar. Escrevo entre uma reunião e outra, anoto no celular, uso IA para estimular as ideias. Não é o que sonhei, mas é o que cabe na realidade. E se um dia alguém disser que isso não é ‘arte de verdade’, retruco: arte de verdade é a que sai da minha cabeça pro mundo — mesmo que capenga, mesmo que mutilada, mesmo que escrita às 5h da manhã antes de levar a criança na escola.
Eu sei que esse é um tema sensível. Parece que até admitir que encostou numa IA é motivo para revogarem sua carteirinha de escritor. Afinal, o ChatGPT, em teoria, vai roubar nossos já desvalorizados empregos. Mas, às vezes, para quem não tem alternativa, até uma aliança com o inimigo é melhor que sucumbir.
É claro que tentar espremer cada segundo da rotina para ser capaz de criar algo não deveria ser uma necessidade. De longe, não é o ideal — mas é o possível. Não posso opinar sobre como cada um decide enfrentar essa realidade, mas eu decidi que ia utilizar tudo que estivesse à minha disposição para tornar minha escrita uma realidade.
Lynch tinha razão: criar exige mergulho. Mas quando você só tem tempo de molhar os pés, resta aprender a nadar em poças.
Deixe um comentário