Uma reflexão sobre pesquisa, criatividade e a busca por conhecimento como lazer.
Desde muito cedo, eu tinha um interesse incomum no que dizia respeito aos desenhos animados, quadrinhos e videogames: eu queria saber como eles eram feitos. Mais do que isso, eu queria fazer os meus próprios.
Então, além de dedicar horas e horas desenhando e escrevendo, eu também mergulhava em revistas, livros e tudo que eu conseguia sobre esses temas. Eu partia de algumas perguntas como “quais os princípios básicos da animação?” ou “como eles fazem um jogo de videogame” e ia puxando o fio da meada rumo ao infinito.
Quando me deparei com a internet, foi como uma explosão de novos sabores. De repente, eu não estava mais limitado pelo acesso físico ou pela ausência de dinheiro típica daquela fase da vida — vale frisar também que, naquele momento da internet, praticamente tudo era gratuito ou facilmente pirateável, pro bem e pro mal. Foi natural que eu olhasse pra internet em si e quisesse saber como aquilo funcionava. Não demorou muito, quis montar meus primeiros sites, escrevendo páginas sobre esses meus interesses.
Ainda nessa fase, conhecendo outros amigos na escola com interesse em computadores, eu me envolvi em um projeto no qual montamos um laboratório de informática baseado em Linux, reunindo um monte peças de máquinas pré-históricas (já naquela época) para revitalizar os computadores e dar aulas gratuitas de inclusão digital. Eles lideraram a coisa toda, mas eu entrei no barco porque também dava meus primeiros passos naquela área, cultivando longas conversas e trocando material de leitura.
Tudo isso só foi possível graças a um traço que tínhamos em comum: a curiosidade constante. Esse era o motor que nos mantinha sempre pesquisando, estudando, fuçando, testando e construindo coisas aqui e ali.
Depois de adulto, ao me deparar com a cultura de especialização do mercado de trabalho, comecei a entrar em uma crise: a de não saber qual era o meu rolê. Como escolher só um caminho se eu tenho tantos interesses? E pior: será que essa curiosidade me fazia parecer disperso, sem foco, sem uma identidade profissional bem definida?
Por muito tempo, achei que precisava definir uma resposta. Mas, de uns tempos pra cá, minha perspectiva vem mudando. E se, em vez de ver essa diversidade de interesses como um problema, eu começasse a enxergar como parte de quem eu sou?
E se o meu hobby for aprender?
Pesquisa ativa vs. Consumo passivo (ou: combatendo o brainrot)
Essas experiências meio lúdicas da infância e adolescência me marcaram muito e acho que não seria exagero dizer que moldaram o adulto que eu sou. Até hoje, acho difícil sinalizar a maneira como esses mergulhos me impactam.
Uma conversa que costumo ter com um amigo músico inclui sobre como nossas atividades criativas nos afetam. Ele vê como um esforço, no sentido de que é algo que consome energia cognitiva. Ele se sente drenado e precisa descansar após fazer uma música nova, por exemplo.
Eu, por outro lado, ainda que trabalhe com isso, vejo essas atividades como uma forma de ócio criativo, um lazer. Eu ganho energia se passo meu tempo escrevendo ou tocando um instrumento, de tal forma que, muitas vezes, esqueço até de comer ou beber água.
É claro que a idade adulta trouxe desafios no que diz respeito ao tempo livre pra dar fruição a esses surtos de interesse. Antes, é óbvio que eu não tinha muita coisa concorrendo pela minha atenção. Agora, além do trabalho, dos boletos e das obrigações domésticas, tenho toda uma cultura que me quer entorpecido no sofá, viciado em memes e polêmicas, engolindo passivamente uma alucinação após a outra.
E é justamente nesse cenário que a pesquisa se tornou, para mim, um firmar de pés contra essa tendência. Se antes era um instinto natural movido pela curiosidade, hoje é também um jeito de manter a mente ativa, de não deixar que a avalanche de estímulos descartáveis substitua o prazer de investigar, descobrir e criar. É meu remédio contra o brainrot.
Começar a escrever periodicamente me trouxe esse compromisso mais concreto, me fazendo perceber que a pesquisa não só é uma parte do meu processo como, muitas vezes, é o ponto central de fazer arte.
Essa ideia da pesquisa como um hobby criativo ou uma atividade de lazer grudou em mim porque ressoa com minhas experiências da infância. Quando cheguei pela primeira vez a essa definição, houve aquele momento de acender as luzes. É isso! Finalmente, um nome para algo que estava comigo e eu não sabia como expressar: a curiosidade que vem da paixão, do interesse, do desejo de fazer a próxima pergunta e ver onde aquilo vai levar. Não é uma obrigação, é prazer. É um viver no qual é gostoso ler, aprender, escrever e colaborar.
Qual é o processo básico de pesquisa?
É claro que existe a definição acadêmica de pesquisa — um processo estruturado de coleta de evidências e produção de conhecimento. E, obviamente, o que eu conhecia na adolescência era mais intuitivo, uma busca pelo simples prazer de aprender algo novo.
Porém, quando estudei design na faculdade, isso me aproximou de um processo que, apesar de mais solto do que na pesquisa acadêmica, ainda é bem mais estruturado. O design é um método, afinal de contas. Existe experimentação, tentativa e erro, um foco na descoberta através da prática. É uma pesquisa que não se limita a coletar e organizar informações, mas que se manifesta na construção de algo novo — seja um conceito, um protótipo, um layout ou uma experiência.
Tem suas similaridades com a pesquisa artística, mas não é bem a mesma coisa. Enquanto a arte pode ser completamente subjetiva e intuitiva, o design ainda busca resolver um problema, atender a uma necessidade específica.
Então, tendo em vista essas três abordagens, abaixo eu resumo alguns aspectos essenciais delas.
Tudo começa com uma pergunta
A fagulha para começar uma pesquisa é a curiosidade. Essa fagulha vai gerando novos questionamentos que podem levar a uma hipótese. Assim, você cria uma trilha, uma cadeia investigativa que pode gerar uma contribuição à grande teia cultural, um pontinho na trajetória humana.
Dando como exemplo um interesse meu: por que Zelda continua relevante após tantas décadas? Como a essência da franquia se mantém, mesmo com mudanças drásticas na jogabilidade e no design? De que maneira cada nova geração de jogadores interpreta e se apropria desse universo? O que faz de Link um protagonista tão icônico, apesar de nem falar? Como a música, a direção de arte e a narrativa influenciam a sensação de exploração e descoberta na série?
Um compromisso com a evidência
É essencial executar experimentos, analisar resultados, traduzir ou transcrever fontes, realizar entrevistas, etc. Você não pode afirmar que está fazendo uma pesquisa se não se abrir para a possibilidade da sua hipótese estar errada. Ou seja, é necessário que a prioridade seja chegar próximo de uma verdade, manter a precisão dos fatos — além de reconhecer vieses e como essa noção de verdade e precisão pode ser parcial.
Entender da história, teoria e práticas da área a ser trabalhada
Não dá para começar a tratar de um tema sem ter alguma dimensão do contexto atual daquele campo. Romancistas atuais, por exemplo, podem estar questionando ou subvertendo fôrmas narrativas tradicionais, buscando novas maneiras de contar histórias que refletem sensibilidades sociais mais amplas ou que desafiam normas estéticas do passado. Isso requer conhecimento prévio das teorias literárias, estilos narrativos e obras que estabeleceram paradigmas específicos. Ou seja, isso significa que escritores precisam realizar leituras abrangentes e direcionadas que os situem claramente dentro do diálogo literário.
A pesquisa precisa se materializar
A ideia da pesquisa não é apenas coletar evidências a esmo. Também não é só compilar ou organizar informação de um jeito interessante. É fundamental avançar a discussão, trazer novas ideias ou, ao menos, uma nova perspectiva em alguma forma palpável — uma apresentação, um livro, um artigo, um ensaio, etc. Caso contrário, você está apenas lendo sem rumo — o que ainda é melhor que ficar scrollando, mas não é o ponto aqui.
A comunidade fortalece a pesquisa
Em geral, a pesquisa envolve uma pessoa mais experiente, um orientador ou um mentor guiando o processo. Além disso, é fundamental encontrar pares com quem discutir, pessoas que possam adicionar perspectivas e energia. Por se tratar de uma atividade cujo objetivo é ampliar o conhecimento humano, o amplo debate depura e fortalece a pesquisa.
E qual a diferença para a pesquisa como um hobby ou lazer?
A pesquisa como um lazer, pra mim, se refere a algo realizado fora do campo institucional. Ainda que a atividade seja um hobby, ela inclui todas as qualidades citadas aqui em cima: um desejo de responder a um questionamento, compromisso com evidências que embasem as descobertas, um entendimento amplo da área de atuação (ou, no mínimo, o desejo de utilizar a pesquisa como parte da construção desse embasamento), uma entrega e a exposição a uma comunidade.
Mas existem também outras características próprias da abordagem como hobby:
Se um tema alimenta sua curiosidade, é válido
A pesquisa como hobby é fundamentalmente pessoal. Você pode escolher o assunto que quiser. Cinema, escrita, ilustração, pintura. Não importa se você, de repente, quis catalogar os pássaros do seu bairro ou se quer entender melhor as origens do jazz fusion japonês dos anos 70. Basicamente, se te envolve e alimenta sua curiosidade, é válido. Qual seu interesse agora?
E se o assunto fizer você emendar outro tema que parece não ter nada a ver, isso é motivo pra se animar, não pra ter medo. Esse tipo de pesquisa é ideal pra quem não se incomoda em ser meio amador, pra quem gosta dessa ideia de aprender de forma um tanto caótica, sem pretensão de esgotar totalmente um tema.
Para os nossos propósitos, “pesquisa” é uma atividade fundamentalmente humana, uma aventura, um ofício, um chamado ao contato, ao convívio cultural.
O diletantismo é bem vindo
Pesquisar como hobby tem uma qualidade meio anárquica.
Em quase todos os outros contextos, somos incentivados a nos especializar, o que abre algumas portas mas fecha outras. Assim, criamos um hábito de evitar tatear áreas vizinhas, nas quais nos faltam a “formação correta”, fugimos de métodos que não dominamos ou de referências pouco tradicionais, que podem ser mal vistas por colegas.
Mas quando a pesquisa se torna um hobby criativo, essas fronteiras deixam de existir, o diletantismo chega até a ser bem vindo. Qualquer área pode oferecer ideias interessantes, ferramentas úteis ou abordagens diferentes.
É possível flexibilizar a metodologia
Na pesquisa feita como hobby, as normas ou métodos são possibilidades. Você pode adotar ou abandonar certas práticas conforme elas fizerem sentido no seu processo.
Isso não quer dizer que dá para ignorar completamente qualquer critério, afinal, a metodologia importa para que se possa reconhecer o valor do conhecimento gerado, mesmo num contexto informal.
No entanto, a liberdade que se ganha permite combinar abordagens diferentes, testar técnicas incomuns ou explorar novas referências. O resultado é uma experiência mais leve e espontânea, que pode conduzir a descobertas e discussões inesperadas.
A comunidade é um encontro apaixonado
Muitas vezes, nos ambientes mais institucionais, a comunidade é o efeito de uma conveniência ou de uma necessidade em comum. Profissionais ou estudantes que querem um diploma, por exemplo.
Mas, no caso de reuniões por um determinado assunto, a recompensa está no encontro em si, na oportunidade de falar sobre o tema, de trocar conhecimento. O chamariz não está em um certificado ou em um título, mas no próprio ato de compartilhar descobertas, teorias e referências.
Sabe aqueles comentários em fóruns, newsletters ou no vídeo de alguém que decidiu gravar um tutorial? Esses são espaços onde ninguém precisa provar nada pra entrar, basta gostar daquele tema e ter disposição para conversar.
Quando é um espaço físico, com um encontro real num curso ou num workshop, então, o olho no olho garante ainda mais troca humana — coisa que anda rara.
Conectar pontos e acumular referências: a pesquisa como motor da criação

Pelo que observo, o mais comum é que artistas, de um modo geral, sejam bastante propensos a encarar a pesquisa como um hobby anexo às suas atividades criativas.
Puxando o fio da meada, dá pra dizer que praticamente qualquer escritor, em especial os que vão na linha dos ensaios ou dos romances, acabam tendo a pesquisa como um hobby criativo. Tudo que eles fazem no tempo livre influencia a escrita de alguma forma — livros que leem, filmes que assistem, músicas que ouvem, histórias que vivem. Afinal, para conectar pontos e colidir novas ideias, é essencial ter repertório.
Na ponta mais de produtores de conteúdo, a internet está tomada de gente que não é exatamente profissional, mas que se move pelo mero interesse e vontade de compartilhar informação sobre um determinado assunto. Alguém que comprou um livro e decide dar suas impressões em vídeo. Um cara que está numa missão para fazer reviews de todos os jogos de Super Nintendo. Uma pessoa que começou a falar de pinturas japonesas do século XIX e, de repente, se tornou uma espécie de arquivista do assunto. Seja no Youtube, no Reels ou no TikTok, a gente vê essas pessoas por aí.
Eu gosto bastante da Maria Popova, que mantém desde 2006 o blog The Marginalian — que antes era Brain Pickings. Ali, ela publica os resultados das próprias leituras, coletando citações e notas em diversas áreas como literatura, filosofia, psicologia, etc. Hoje, o domínio dela, além de ser um belo exemplo de alguém que mantém uma carreira criativa desplataformizada — algo que todos nós, artistas, precisamos tomar nota —, é um registro de toda uma acumulação de conhecimento, uma trilha que indica os caminhos que a curiosidade dela percorreu, sem contar que é uma rede absurdamente densa de referências e ideias, com direito a comentários e links cruzando ideias similares de outros autores.
Inclusive, inspirado no trabalho dela, eu publico notas sobre as minhas leituras, que disponibilizo como conteúdo exclusivo para apoiadores.
Acredito que o Substack é um terreno bastante fértil para pessoas assim, com interesse e curiosidade infinitas, capazes de mover uma cultura alternativa puramente na base do autodidatismo e do Faça Você Mesmo.
Penso que, por ser uma rede bastante nova, o Substack tem muito espaço para pessoas de diferentes áreas trazerem suas bagagens e começarem a explorar novos terrenos, sob uma lógica bastante diferente das outras redes — para começar, focando na profundidade da escrita para formar uma comunidade e não na produção de vídeos acelerados para chegar em novas pessoas.
Aqui, uma psicóloga pode falar sobre moda, um pintor pode tratar da conexão entre a sua arte e a forma como a música influencia o seu trabalho, uma escritora pode arriscar comentário cultural amplo, um geólogo pode falar sobre as maravilhas do litoral do nordeste… sei lá, o céu é o limite.
Nesse mundo onde cada interface tenta nos prender pelo prazer imediato, reduzir o ritmo, fugir das telas, pegar um livro e fazer anotações para compartilhar aprendizados não me parece uma forma ruim de passar o tempo.
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