Decidi endereçar o elefante na sala. ChatGPT. Ele existe.
E, vamos convir, muita gente usa. Não dá para negar que, considerando um país onde tantos não conseguem nem escrever um e-mail, ter uma ajudinha do ChatGPT é uma baita mão na roda.
Vamos supor que você estava vivendo dentro de uma caverna nos últimos anos. Enquanto todo mundo estava preocupado em se recuperar dos abalos da pandemia, uma empresa chamada OpenAI liberou para o público uma ferramenta mágica. Uma espécie de chatbot que foi criado para ter conversas com humanos, mas que logo foi alçado ao status de oráculo, sendo forçado a responder às mais bizarras questões da humanidade e a fazer de tudo um pouco. Foi um tempo até as pessoas começarem a entender que o ChatGPT era, até ali, um gerador de lero lero muito bom.
Assim, pouco a pouco, ele foi ocupando seu devido lugar como recurso de texto, de estudo, pesquisa e análise de dados. Nas 3 últimas tarefas ele tem seus tropeços, afinal, gosta de inventar informação, mas justamente na parte da escrita, ele consegue resolver uma boa parte das situações de forma bem convincente.
Ou seja, sobrou pra mim — e, provavelmente, pra você também, se escrever é o seu ofício.
Na música existe uma discussão antiga e bem parecida com a que rola com a IA agora. Antes de anônimos usarem IAs para lançar discos no Youtube em tempo recorde, ou do Spotify declarar legítimas músicas, playlists e podcasts feitos com IA, os remixes e samples já faziam muita gente arrancar os cabelos, se perguntando se recortar um pedaço de algo e colar em outro lugar seria arte. Hoje, já é mais comum ver músicas com samples, inclusive em lançamentos milionários. Não sei se ainda tem muita gente que abriria a boca para dizer que algum desses lançamentos não é arte sem correr o risco de ser visto como uma peça de museu.
Talvez, daqui a algum tempo, vamos achar aceitável que um livro feito a partir de uma série de ordens pro ChatGPT ganhe um prêmio e vamos reconhecer quem operou a IA como um artista. Quem sabe?
De alguma maneira, ao menos agora, o uso da ferramenta ainda afeta a percepção do valor da arte. Existe uma diferença entre a escrita auxiliada pela tecnologia e a escrita gerada pela tecnologia.
A apreciação de uma obra de arte muitas vezes vem acompanhada de um fascínio sobre como ela foi feita. Acontece comigo frequentemente. Eu me deparo com um desenho e acho fascinante, mas no momento que descubro que não foi feito por um humano, perco imediatamente o interesse. Pra mim, não faz sentido observar e me fascinar por algo que é apenas uma decisão estatística.
Parte da emoção que eu sinto ao ler poesia ou observar uma pintura está no prazer de testemunhar o talento humano, o esforço, a dedicação, a história por trás do trabalho. Não é muito diferente de apreciar um esporte como o atletismo, por exemplo — ou seja, existe um interesse pelo que um ser humano é capaz de fazer. Sim, é possível escrever um poema com inteligência artificial, da mesma forma que uma pessoa poderia percorrer 100 metros de carro e ir muito mais rápido — no entanto, isso seria outra coisa. O automobilismo surgiu e não acabou com a corrida a pé, né?
De uma forma similar, não é porque algo foi feito com IA que foi necessariamente fácil. Qualquer pessoa que tenha tentado usar a IA de forma mais séria, já deve ter percebido como é difícil chegar naquelas imagens incríveis que, volta e meia, viralizam por aí. Da mesma forma como fazer uma boa música utilizando samples não é menos difícil, usar IA para chegar em um resultado substancial demanda uma boa dose de paciência.
Eu não reconhecia o valor de um piloto de Fórmula 1, por exemplo, mas hoje posso afirmar que isso era apenas ignorância da minha parte. Não é um absurdo imaginar que parte do meu ranço com a arte gerada por IA seja só isso mesmo: ranço.
Num mundo em constante mutação, rejeitar completamente as inovações tecnológicas pode se tornar um problema. Querendo ou não, estamos aqui, nos comunicando pela internet. E não é como se não existissem possibilidades éticas de uso desse recurso. Dá para realizar brainstormings, pedir resumos, listar tópicos — ou seja, atividades complementares. O ChatGPT pode ser aquele amigo para quem você pede opiniões e bate um papo quando precisa destravar, com a diferença de que ele nunca se cansa de responder — desde que você assine a versão Plus.
Também dá para usar como base para inúmeras escritas mecânicas, chatinhas. Eu diria que, como uma regra geral, podemos dizer que em toda escrita protocolar, cheia de normas, ele é super útil. As legendas das suas fotos, os títulos de SEO, documentos e ofícios… tudo isso ele vai resolver bem.
Mas a escrita não é só isso. Existe a arte da escrita. Ou seja, quando o ser humano pega sons e símbolos e decide brincar de contar histórias, expressar sentimentos, transmitir conhecimento e sabedoria — entre milhões de outras possibilidades.
Ainda utilizando a música como paralelo, um grande debate ocorreu por muitos anos sobre o uso de ferramentas de correção vocal. O famigerado autotune. Com os anos, esses plugins só se tornaram mais eficientes e mais difíceis de ouvir, quando usados. Hoje, são um padrão de mercado. É usado quase em 100% das canções pop e em quase todos os gêneros. Você pode assumir com quase 100% de acerto que, se é uma música lançada profissionalmente, ela utiliza o Melodyne ou algo parecido. Tem até gêneros musicais que fazem uso estético desse recurso, assumindo totalmente seu uso e incorporando ao processo.
Eu sei que, mesmo no contexto do uso complementar, vai ter alguém aí armando as pedrinhas pra jogar, dizendo que é desnecessário, excessivo — que é roubar no jogo. Mas, se pensarmos que qualquer editor de texto hoje tem um autocorretor que sai trocando as palavras sem que você perceba, dá pra ver que não vamos muito longe sem uma ajudinha. Faz parte.
Ainda assim, o uso do ChatGPT para substituir a escrita criativa pode ser um problema. Não por ser trapaça ou qualquer coisa assim, mas porque escrever é pensar. Pela escrita, você refina seu raciocínio, suas crenças, destila sentimentos, dá sentido e emoção aos seus processos. Escrever exige tempo, paciência e, muitas vezes, enfrentar o desconforto de não saber o que dizer. Por meio desse diálogo com o papel, algo se movimenta internamente. É um pouco triste delegar isso a uma máquina. É uma derrota.
Acontece que o que diferencia um humano de qualquer outro ser é a capacidade de articular conceitos abstratos. Nós abstraímos. Todo o resto tem outros seres que também conseguem fazer. Um cachorro faz tudo, até amar. Mas ele não é capaz de entender o que é o amor.
Por mais dados estatísticos que uma máquina tenha, organizar palavras e pensamentos de forma que ressoe, gere sentimento e identificação genuínas, não é tarefa simples. Quando escrevemos, não estamos apenas organizando palavras que funcionam. Estamos buscando algo que, muitas vezes, nem sabemos nomear. A escrita é tanto técnica quanto intuição, tanto controle quanto entrega. O aspecto material da escrita, ou seja, as palavras impressas na tela ou no papel, são apenas a parte mais grosseira. Linguagem, como veículo para a abstração, é algo extremamente humano.
A IA não sabe o que é ter uma pele que queima e dói. Até agora, ela gera apenas a aparência de um relato como se tivesse vivido a experiência, mas são palavras vazias, como alguém que fala sobre o Japão apenas por ter visto fotos. Sem dúvidas, é possível e pode até ser bem convincente. Mas não importa quantas fotos você veja, nunca vai ser como passar uma tarde em Kyoto.
Basicamente, uma das principais diferenças é que você, quando escreve, sabe sobre o que está escrevendo. A IA, não. O ChatGPT calcula que perto do nome Kyoto tem grandes chances de vir o verbo “ser”, que em seguida provavelmente vem “cidade”, e que depois deve vir o adjetivo “bonita”. Daí, ele vai lá e escreve: “Kyoto é uma cidade bonita”. Ele repete padrões, como um papagaio. Ele não acha que Kyoto é bonita e nem sequer sabe o que é “bonita”, em primeiro lugar.
Ou seja, quando você pede pro ChatGPT gerar um texto, copia e coloca seu nome, você está assinando uma coleção de clichês. Por definição, é exatamente isso que o ChatGPT é — e por isso que ele é ótimo para escrever e-mails e posts do LinkedIn, aliás.
Por outro lado, um humano entende contexto. Pode abordar um objeto mental por múltiplos ângulos. É capaz de ampliar a escala de percepção, sintetizar ou expandir algo que foi absorvido de forma a adicionar riqueza, detalhe, vivacidade e novos conhecimentos. A escrita feita por um humano pode ter um escopo virtualmente infinito, tanto em volume quanto em profundidade. Muitas vezes, a escrita vem de um lugar não-racional, intuitivo, que só um olhar a partir de um corpo no espaço pode proporcionar.
Mas será que importa como o texto é feito, desde que ele funcione? Se esse texto emociona, se representa uma experiência, se soa natural, alguém ligaria se foi feito por um humano ou não?
Quando penso a fundo, percebo que, muitas vezes, eu começo a ler sem sequer saber quem é o autor. Se é homem, se é mulher, se é branco ou negro… apenas quando eu noto que algo significativo está escrito é que eu entro nessa camada. E aí, isso adiciona muitas nuances importantes, não dá para negar. Mas, em princípio, pelo lado da leitura, não é o autor quem faz o texto ter existência e peso. Sou eu.
Mas no caso de um texto de IA, isso ganha uma outra dimensão. Pela forma como um texto de IA é gerado, o sentido efetivamente não está no texto, mas na mente de quem lê. Vejo algo semelhante operando quando fazem aqueles vídeos no estilo “Freddy Mercury cantando Metallica”. Um ouvido minimamente treinado percebe que aquele áudio não tem praticamente nada das articulações, trejeitos e demais nuances da voz dele. Mas quem vê a foto dele e ouve música esporadicamente fica ali dizendo que está igual. É o equivalente a ver um espantalho e achar que se trata de uma pessoa. Esse não é um problema da IA, mas de toda uma cultura galgada no consumo rápido, onde a nuance se torna irrelevante e até indesejável, algo que atrapalha.
Ainda assim, eu arriscaria dizer que a escrita feita por humanos importa, talvez até mais do que nunca. A escrita humana importa não porque a IA nunca vai escrever algo que soe legítimo, mas também porque quanto mais específica a experiência, mais difícil é reproduzi-la pelo método atual: colocando uma montanha de dados para serem mastigados e regurgitados. Essa maneira de reorganizar a informação está no cerne da questão. Esses modelos de linguagem só são tão bons quanto a sua capacidade de imitar um humano médio. Ele gera uma média estatística, mas a experiência humana é vasta.
Apenas um humano como você pode contar como é estar na sua pele, no seu bairro, sendo criado pelos seus pais — ainda que sua forma de expressar isso seja inventando histórias. Perspectiva é algo que não dá para imitar tão facilmente, especialmente se você estiver fora do foco, vivendo mais nas margens. Um humano pode até não ter dados, mas é capaz de chegar a algo profundo, verdadeiro, apenas pela abstração e pela linguagem.
Sim, sempre vai ter aquelas pessoas que não ligam. Mas essa já é a realidade. Escrevo porque quero escrever, porque me ajuda a dar forma ao mundo, a lidar com minhas dores, minhas dúvidas e também para ser feliz. Afinal, eu gosto disso.
A voz que fala com você aqui, enquanto escrevo, é a minha. Só minha. Sou eu pensando na sua cabeça. Enquanto eu escrevo, você reconstrói minha voz, faz das minhas lembranças as suas. Quando descrevo meus sentimentos, você busca no que sentiu antes a correspondência com o que eu sinto. E até quando discorda de mim, uma porta para algo diferente em você se abre. De uma forma até um tanto inexplicável, eu e você nos tornamos um só. Meu fluxo mental fica inseparável do seu.
No fim das contas, a escrita é plugar uma mente na outra. É conhecer e reconhecer outras possibilidades de pensar e sentir. E isso, até onde eu sei, ainda é algo profundamente humano.
É óbvio que o ChatGPT pode ser útil. Mas ele não é um substituto à escrita humana. A IA certamente processa e condensa dados, pode até ter algumas escolhas de palavras interessantes aqui e ali, mas ainda não é capaz de criar nada realmente novo, ainda que você coloque toda a internet nela.
Uma coisa é certa: no grande esquema das coisas, tem escritas que provavelmente devem mesmo ser automatizadas. Muita gente sequer consegue perceber a diferença — e talvez nem se importe. Afinal, quem liga se foi um robô quem escreveu um e-mail pra marcar uma reunião?
Mas quando você, escritor, utiliza a IA em substituição ao seu trabalho, está delegando algo que o faz ser o que você é. Ao escrever, você faz algo que nenhum outro ser ou máquina no planeta é capaz de fazer — nem o ChatGPT. Você gera conhecimento, reflexão. Efetivamente coloca pra jogo a sua perspectiva, a sua experiência de ser o seu corpo, de ter as suas capacidades intelectuais humanas. Mesmo que o ChatGPT faça parecer que pode te substituir, nesse ponto ele não pode.
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