Como David Lynch pode melhorar a sua escrita

David Lynch

“O medo da morte é muito real, mas ouvi dizer que a vida é continuum, e que continuum é consciência. Consciência é vida e consciência é continuum. Assim, dizem que a morte é apenas uma transição e os seres humanos estão na roda de nascimento e morte. E para ganhar esse jogo precisamos iluminar-nos e sair dessa roda de nascimento e morte, tomando consciência de que somos imortais; e nesse estado estaremos inteiramente plenos, completamente libertos e realmente muito, muito felizes.” — David Lynch

Em 15 de janeiro de 2025 morreu David Lynch.

Você pode definir Lynch como um artista do subtipo cineasta. Afinal, ele foi responsável por pelo menos dois clássicos do cinema e um da TV, os filmes Veludo Azul e Cidade dos Sonhos; e a série Twin Peaks — que é imperdível. Lynch era um mestre do bizarro e surreal. Tanto que em 2019, recebeu um Oscar honorário pelo conjunto da obra.

Mas tem muito mais por trás. David Lynch foge ao estereótipo de artista mentalmente aflito e caótico — que era bem comum no seu tempo. Ele foi profundamente influenciado pela meditação transcendental, o que traz uma perspectiva muito diferente à forma como ele aborda a criatividade. Ao invés de acreditar que o artista precisa sofrer para ser criativo, sua crença é de que, pelo contrário, o sofrimento desmedido atrapalha a arte.

“A raiva, a depressão e o sofrimento são muito bonitos nos enredos, mas venenosos para o cineasta e o artista. São como torniquetes na criatividade. Se você estiver preso nesse torniquete, vai ser difícil se levantar da cama e mais ainda vivenciar o fluxo de criatividade e ideias. Para criar, é preciso ter clareza. Você tem que ser capaz de pegar as ideias.”

Nos últimos dias, numa conversa com o

Matheus de Souza, surgiu o assunto do falecimento do David Lynch e ele me lembrou do livro “Em águas profundas: criatividade e meditação”, que eu ainda não tinha lido, mas já tinha ouvido falar. O livro é bem curtinho, deu pra devorar em uma tarde e está repleto de pensatas, memórias da produção dos seus filmes, mas principalmente, notas sobre meditação.

Enquanto celebramos a vida de um grande ser que caminhou pela terra, vale revisitar não só a obra do artista, mas também o pensamento. Afinal, a morte é um dia que vale a pena viver, como diria Ana Claudia Quintana Arantes.

Desenvolvendo ideias

Aqui no Substack somos uma comunidade, principalmente, de escritores e leitores — ao menos por enquanto. Embora Lynch fosse principalmente um cineasta, todos sabemos que o cinema começa na escrita. A maioria dos filmes do David Lynch têm roteiro escrito por ele mesmo, o que quer dizer que ele tem prática em desenvolver ideias e pensamentos por meio da escrita.

Inclusive, seu método para desenvolver histórias é um dos mais objetivos e práticos que eu já vi na vida. Consiste, basicamente, em escrever suas ideias para as cenas em pequenos cartões de uns 8x12cm, aproximadamente. Você faz isso várias vezes e, quando tiver 70 cartões preenchidos, você tem um filme.

Ele diz no livro, “Você tem que se apaixonar pela primeira ideia, por aquela pequena peça. E quando se apaixona por ela, o resto vem com o tempo.”

Primeiro, você precisa ter uma ideia e essa semente inicial não pode ser abandonada durante o processo por interferências externas. Como diretor (autor?), é você quem é o guardião da ideia. “Se você tem o direito de fazer o filme, deve ter o direito de fazê-lo à sua maneira. O cineasta é que deve decidir por cada elemento, cada palavra, cada som, cada coisa, por menor que seja. Se não for assim, o filme não forma um todo. E pode ser até que o seu filme seja uma droga, mas pelo menos é uma droga que você fez.

No entanto essa é só a entrada, o início da estrada. Também é preciso persistir, buscar se aprofundar.

“Os pequenos peixes nadam na superfície, mas os grandes peixes nadam em águas profundas. Se você conseguir expandir o cesto de pesca – sua consciência –, poderá pegar peixes maiores.”

Sobre o medo do fracasso

É bem bonito presenciar a autonomia e coragem de um artista como o David Lynch. Segundo Lynch, quanto mais filmes se faz, mais fácil se torna fazê-los. Você se familiariza com o processo de pescar e traduzir ideias. Você passa a entender o processo inteiro porque já fez aquilo antes.

Mas o fracasso está sempre ali, projetando a sombra do medo. Às vezes, imaginamos que, conseguindo fama e respeito, tudo está resolvido. Mas não é bem assim. Cada trabalho envolve um risco, o que acaba influenciando a produção.

Não dá para criar apenas pensando no que vai agradar a um determinado público. “Se você começar a pensar em como seduzir os outros, se dessa ou daquela forma, é melhor parar de fazer filmes. Só se deve fazer aquilo que se ama; é assim que nos abrimos para o inesperado.”

Estamos nessa realidade onde, hoje, parece inevitável agradar aos algoritmos antes mesmo de pensar na ideia. Muita gente conduz seu trabalho pensando no que vai viralizar e movimentar números estratosféricos. Mas isso não resolve tudo.

Ele reforça, constantemente, ao longo do livro: “Permaneça fiel a si mesmo. Faça sua voz soar e não deixe que ninguém a abafe. Nunca desista de uma boa ideia e nunca aceite uma má ideia. E medite. É muito importante que se vivencie o Próprio Eu, a consciência pura. Isso realmente me ajudou.”

Os desafios da arte no cotidiano

O tempo para criar deve ser uma das maiores dificuldades para quem quer ter envolvimento com a escrita em meio ao cotidiano. Encontrar momentos de calma e concentração, mesmo que breves, é essencial para que qualquer processo criativo se desenvolva de forma plena. O problema é: como fazer isso enquanto lidamos com tantas demandas do trabalho, da casa, da família, dos amigos?

Bem, não sei se existe uma resposta pronta e fácil — provavelmente, não. Mas Lynch fala um pouco a respeito de como ele entende a necessidade de dedicação e tempo, parafraseando o pai do amigo, Bushnell Keeler: “Se você quer uma hora de boa pintura, terá que dispor de quatro horas só para si”.

Isso é, basicamente, uma enorme verdade. Você precisa de tempo para chegar em uma ideia. Escrever não é o mesmo que digitar. É necessária uma certa folga, um espaço por onde você possa manejar seu raciocínio. A escrita começa a aparecer se há o espaço para ela chegar. Esse espaço é o tempo.

Como ele explica, “se você está preocupado porque 30 minutos depois estará em algum lugar, não há como criar. Por isso, a vida artística implica liberdade; é preciso tempo para que as coisas interessantes possam acontecer. Nem sempre há muito tempo para as outras coisas.”

A meditação como método para a abertura

David Lynch tem uma visão de mundo profundamente influenciada pela meditação transcendental, que ele faz questão de trazer para o seu processo. Todos os dias ele pratica, duas vezes ao dia, o que abre espaço mental e possibilita seus mergulhos. Mas é importante entender o verdadeiro propósito, para não cair em um engano que mais atrapalha do que ajuda: “Ninguém usa a meditação para obter ideias. O que se faz é expandir o reservatório e sair dele revigorado, com muita energia e aberto para as ideias que virão.”

Ele também reforça o poder e a necessidade da intuição como ferramenta criativa. Não dá para resolver tudo com métodos e fórmulas. Existe algo sutil que opera enquanto você está em um estado de abertura criativa, mas é preciso estar atento, observar e sentir, para se permitir confiar e se deixar levar.

Novamente, para ele, a meditação é a chave: “Pessoalmente, acho que a intuição pode ser aguçada e expandida através da meditação, mergulhando em Si Mesmo. Dentro de cada indivíduo existe um oceano de consciência, um oceano de soluções. E quando mergulhamos nesse oceano, nessa consciência, nós a despertamos.”

Não nascemos para o sofrimento

Eu compartilho dessa visão. Também tenho a meditação na minha rotina, embora vinculado ao budismo tibetano — ou seja, é outra coisa —, mas posso afirmar que a prática é essencial e influencia todas as esferas da minha vida, inclusive, sendo fundamental na manutenção da disciplina e na paisagem mental necessária para manter a consistência. Sem uma base mais ampla, não sei onde estaria hoje — melhor nem pensar muito nisso. De uma forma ou de outra, no dia a dia artístico não dá para confundir o conhecimento das emoções com se deixar ser arrastado por elas.

Se você é artista, deve conhecer a raiva, mas sem ser afetado por ela. Para criar, é preciso ter energia, é preciso ter clareza. É preciso que se esteja apto a pescar as ideias. É preciso que se esteja forte o bastante para combater a inacreditável pressão e o estresse deste mundo.”

É essencial que o trabalho seja feito com contentamento. “Se vou para o set com medo, obtenho um por cento e não os cem por cento que poderia obter. E deixa de ser divertido estar com os outros. E deveria ser divertido. O que se espera tanto no trabalho como na vida é que estejamos juntos. Todos nascemos para sermos felizes, felizes como cachorrinhos abanando os rabinhos. Nascemos para viver uma grande vida, uma vida que se espera ser fantástica.”

Nosso tempo nos alimenta com informação e estímulos constantes, muitas vezes nos afastando da contemplação e do pensamento crítico. No entanto, artistas como o David Lynch, com perspectivas mais compassivas e lúcidas conseguem transcender essa superficialidade, oferecendo obras que nos convidam a refletir sobre as complexidades da existência, sobre a beleza e as nuances do cotidiano. Eles nos mostram que, mesmo em um mundo super saturado ao ponto da exaustão, ainda há espaço para profundidade, emoção e significado.

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