“Sempre” é um tempo inexistente. Em algum momento a gente começa a gostar de algo, aprende e se envolve, mas tem coisas tão antigas que remetem a um infinito no passado, como um túnel cuja perspectiva se afunila em um ponto de fuga.
Eu costumo dizer que sempre gostei de escrever. É dessas experiências tão familiares que não têm um ponto de partida. Curei dores rabiscando e digitando, inúmeras vezes.
Durante a adolescência, foi na escrita que me protegi, contando minhas próprias histórias em cadernos, blogs e arquivos txt que foram ficando em lugares que nem sei mais.
Eu comecei a trabalhar utilizando minhas habilidades artísticas bem cedo. No final da adolescência, já conseguia uns trocados fazendo templates em WordPress. Era um jeito de aproveitar o senso estético adquirido com o meu gosto por desenho e ilustração. Naturalmente, dado o interesse que se ampliou junto com o RPG e os quadrinhos, fui pendendo mais e mais para a escrita.
Assim, no começo da idade adulta, a escrita se tornou um ganha-pão e salvador da pátria. Com isso, a relação acabou mudando. Se antes, as palavras eram meu refúgio, agora elas começavam a pesar. Ao invés de me expressar, eu precisava dar vazão aos objetivos de uma empresa, atender aos processos de edição e formatos impostos pelo marketing de alguém que pagava meu salário.
Acredito que o traço introspectivo faz com que certas atividades, banais pra muita gente, se tornem um sofrimento pra mim. Eu preciso ver um sentido profundo no que faço. Não basta só uma cenoura num anzol pra me fazer puxar a carroça. Eu quero entender porque a carroça precisa existir, em primeiro lugar. Quem está dentro da carroça? Por que a gente não pode ir de barco? E quando a coisa não é clara, eu não consigo empurrar a carroça sem me sentir chicoteado. E, com isso, vou ficando cheio de hematomas e cicatrizes.
Ser introspectivo tem dessas coisas: a gente passa muito tempo dentro, pensando, refletindo, conjecturando, buscando. Nem sempre é uma festa.
Gradualmente, então, fui adoecendo, me perdendo e até querendo me desconectar da escrita.
Acho que muitas pessoas passam por algo similar quando transformam aquilo que fazem por gosto em uma atividade profissional. Especialmente quando essa atividade troca de finalidade e passa a ser usada pra atender a algum interesse arbitrário que amputa a razão de ser da coisa.
Tenho amigos músicos que fazem jingles pra publicidade. Ilustradores que desenham para o aplicativo do banco. Escritores que se tornam especialistas em estratégias de inbound marketing… e por aí vai. São trabalhos honestos e que pagam as contas. Eu mesmo faço isso também. Mas todos são pessoas que de alguma maneira se viram obrigados a usar suas habilidades em troca de uma quantia que não superava o que realmente custava estar ali. Ao longo dos anos, é visível como algo fundamental fica quebrado por dentro.
Percebo que não é porque eu gosto de escrever que vou ficar feliz escrevendo manual de instruções de microondas. Muitas vezes, brinco que a melhor forma de odiar uma coisa que você ama é começar a trabalhar com ela — uma brincadeira que tem um baita fundo de verdade.
A real é que eu não fico bem escrevendo qualquer coisa. Por mais que doa admitir, já cheguei a detestar ter que acordar para sentar em frente a um computador e espremer minha mente, forçando os dedos a martelarem o teclado. Então, me questiono, chegando a pensar que, talvez, eu não goste tanto de escrever. Quer dizer, ao menos, não do ato mecânico em si.
Óbvio, quando escrevo, existe um certo prazer, mas ele só vem porque nesse momento estou explorando um sentimento, seguindo um interesse ou desenvolvendo um raciocínio.
Noto que a escrita, pra mim, não é uma finalidade em si mesma, mas uma ferramenta de expressão. Escrevo sobre o que estou pensando e sentindo. Às vezes, escrevo só por escrever, pra ver as palavras fluindo, pra contar histórias. E, claro, para fazer contato, para conversar sem as limitações do tempo e do espaço, para ouvir alguém dizer que sente o mesmo que eu — ou não.
Ao cortar a linha de chegada dos 30 anos, eu me sentia privado de algo que eu poderia ter vivido. Eu me sentia qualquer coisa, menos vitorioso. Parecia que até ali, eu tinha perdido tempo, consumido minha juventude alimentando o sonho de outras pessoas, ao ponto de ficar sem energia para cuidar dos meus.
O curioso é que eu tinha todas as justificativas do mundo na ponta da língua. As contas, as responsabilidades, a vontade de crescer num emprego “normal”, de ter as minhas coisas.
No olhar da criança, os adultos sabem o que fazem. É bem convincente, ver homens e mulheres caminhando de um lado pro outro tão compenetrados. Especialmente quando controlam a rotina e nos mandam comer, dormir e parar, parece que eles têm essa autonomia para decidir.
No entanto, quando é a nossa vez, logo fica claro que não é bem assim. Os adultos têm outros adultos que, com o poder mágico do dinheiro e do medo, determinam quem faz o quê e quando.
O medo é um cão que ladra e morde. Ele late alto, ecoa e envolve até que ocupa seu pensamento, empurrando pra fora seja lá o que estivesse ali antes. Sua mordida não arranca pedaço, mas arranca tempo. Cada dia com medo é um dia que você não pode viver de novo.
Na caminhada para a velhice, o medo ganha força enquanto as responsabilidades se acumulam e a energia se torna um recurso escasso a ser gerenciado. Não é à toa que as pessoas mais velhas dizem para se aproveitar bem o período antes dos trinta. Não é tanto pela idade em si, mas pela liberdade de fazer escolhas enquanto as consequências ainda não envolvem outras pessoas e você ainda tem um lugar para retornar caso tudo dê errado. Depois, a aposta é cada vez mais alta.
Sabendo disso, o que sobra é arriscar na direção para onde a sua verdade aponta.
Recentemente, voltei a me conectar com a escrita. Não como algo profissional, forçado, feito para atender aos interesses dos outros e às minhas necessidades financeiras. Comecei escrevendo tal como era lá atrás — só pra mim — e depois voltei a ter coragem de publicar — como agora.
Quando penso nesse processo, percebo que tem algo muito autêntico naquilo que a gente faz por amor, porque nos faz bem. Ainda mais numa era onde tudo que não gera likes ou enche o bolso de alguém parece sequer ter o direito de existir.
A escrita assumiu novamente um papel curativo e vem colocando um band-aid em feridas que estavam abertas há tanto tempo que também parecem infinito.
Tem algo muito poderoso quando a gente está apenas articulando o que vem do fundo, independente de ter ou não um lugar no mundo, de servir ou não pra alguma coisa.
E eu tinha me esquecido disso.
Eu passei tantos anos tentando caber nos espaços, expectativas e objetivos dos outros que abandonei a minha casa, o meu refúgio próprio.
Esse texto é um lembrete de cultivar esse espaço genuíno sempre que possível. De lembrar, de permitir que a verdade possa se manifestar. De fazer música, pintar, escrever um poema. Cuidar das plantas, cozinhar, correr, conversar, ajudar alguém… não importa a forma que isso tome. O importante é voltar a morar no meu lugar de autenticidade. Manifestar o que ainda sobrou de vivacidade, amor e presença enquanto eu puder pisar nessa terra.
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