Escrever sem vontade: O que fazer quando as palavras somem

Uma certeza podemos ter na vida: toda fase criativa está grávida da própria secura.

Assim como temos as estações no ano, é natural que um período de ânimo dê lugar àquela temporada de vazio.

Às vezes, é pelo próprio esgotamento do trabalho, mas também acontece por imprevistos na rotina, eventos familiares, feriados, noites de insônia, ressaca, coração partido… motivos para desanimar não faltam. E faz parte, é isso.

Eu venho numa fase dessas.

Um tanto desanimado, sem ideias, excessivamente autocrítico, preocupado com o futuro, acometido por aquelas doencinhas chatas que atrapalham a rotina… o script todo ao mesmo tempo.

Como bom humano cabeça dura que vive numa sociedade de hiper produtividade, minha primeira reação é persistir, tentar forçar o fusível. Os resultados, como é de se esperar, são ridículos. A autoestima vai pro ralo, a energia cai para os níveis de emergência e a vida ri com a mão na boca da minha teimosia.

Então, vamo lá. Hora de falar um pouquinho sobre o que fazer na hora que as palavras não colaboram.

Já pensou em só… descansar?

Um filme que me marcou muito nessa vida foi o Serviço de Entregas da Kiki. É uma animação japonesa de traço fofinho que tem aquele clima de que a vida é boa — que só o Miyazaki consegue proporcionar.

Lá pela metade do filme, Kiki, a bruxinha protagonista, perde seus poderes, numa sequência que é das mais bonitas pra qualquer um que já se viu esgotado mesmo fazendo o que ama.

A solução, no caso dela, é uma mistura de contato com outras pessoas artistas, refúgio em outro espaço e descanso puro e simples. Ela passa por um verdadeiro tratamento, quase como uma pessoa se recuperando de uma doença.

O mesmo se aplica aqui.

No filme, Kiki não recupera seus poderes de um dia para o outro. Ela precisa se afastar da obrigação de voar, se permitir sentir a frustração e, principalmente, dar tempo ao tempo. A criatividade funciona do mesmo jeito.

Afinal, se você está cansado ao ponto de não conseguir criar nada, talvez deva só descansar mesmo. Ninguém aqui é máquina, todo mundo precisa respirar um pouco.

No entanto, se você já tentou dar um tempo e não está funcionando, talvez valha mudar a estratégia — só você vai saber quanto tempo é tempo demais.

Escrita livre como forma de destravar

Quando entro nesses ciclos, costumo perder a vontade de escrever qualquer coisa. Eu não anoto, não faço nada. Não é que eu esteja consciente ou pensando sobre algo. Não é um movimento deliberado. É uma espécie de ranço. Eu passo a desgostar do que eu gosto.

Então, eu me isolo.

Nas últimas duas semanas, eu quase não postei nada no Notes e sumi das redes sociais (apesar de passar horas e horas scrollando em modo zumbi). Meu bloco de notas ficou abandonado. Não escrevi praticamente nada e estava sentindo algo bem ruim em relação ao meu trabalho.

Mas, passado esse tempo, percebi que precisava colocar os motores pra rodar de novo. O que costumo fazer é aplicar um exercício de escrita livre.

A ideia não é publicar, mas tirar a poeira. Falo sobre qualquer coisa. Coloco as palavras que vierem ou escrevo lixo, mesmo que não faça sentido algum.

Por exemplo, nesse parágrafo, estou apenas colocando minhas palavras pra fora. Nada tem sentido. Não importa, eu só preciso escrever, apesar da cozinha estar uma bagunça. Logo pretendo levantar e lavar a louça do almoço. Mas, calma… primeiro preciso escrever esse texto.

É assim.

Algum tempo depois, é possível que você acesse o estado de flow. A mente engata e alguma ideia brilha. Pode ser que demore um pouco, dependendo do quanto você está afundado no embotamento do cansaço. Pode ser que precise de alguns parágrafos ou algumas páginas. Depende. Mas, em geral, funciona.

Nem tudo que a gente faz é o nosso melhor trabalho

Eu gosto de fazer coisas bem feitas. Sinto um prazer enorme em entregar algo que me dá orgulho, que as pessoas olhem e digam “caramba, que legal!”. O problema é que justamente essa autocobrança excessiva me tira do estado que permite criar com frequência. Não dá para colocar energia máxima em tudo o tempo todo.

Então, uma forma de sair do bloqueio é fazer o que dá agora. Pode ficar meio bosta, meio mal acabado, mas é isso.

É como ficar duas semanas sem ir para a academia e tentar retomar. Esse primeiro treino do retorno costuma ser horrível, mas é importante. É com ele que você volta ao hábito e, depois, pode começar a progredir de novo.

Escreva sobre o que está mais imediato

Eu reconheço o valor do planejamento. Inclusive, até tenho um calendário cheio de ideias e pautas, mas no final das contas, o que eu mais faço é escrever sobre o que está na ponta da língua. Largo a ideia planejada e vou pra cima do que me brilha o olho agora.

É assim que consigo sair da inércia, daquele jeito preguiçoso, como quando você precisa acordar cedo mas não dormiu tão bem assim. É difícil, é arrastado, mas acaba rolando.

Quando tento me forçar a escrever sobre um assunto que não me diz nada no momento, as palavras vêm burocráticas. Já quando sigo a trilha do que está vivo dentro de mim, a escrita flui, mesmo que o tema não faça sentido para o que eu “deveria” estar escrevendo.

Às vezes, o corpo sente algo que você ainda não tem claro. Talvez a ideia esteja longe das suas capacidades atuais, talvez ainda tenha algum processo interno para acontecer — e que você não faz ideia. Mas o corpo te impede, porque não é por ali agora.

Talvez seja isso: sair de uma fase estagnada não significa encontrar a ideia perfeita, mas uma ideia com a fagulha já acesa. Mesmo que seja um assunto bobo. Mesmo que pareça sem propósito. O importante é continuar.

Aprenda algo novo

Mas, às vezes, pode ser que você não tenha nenhuma fagulha, nem ideia ruim. Nada mesmo.

Nesses momentos, uma boa ideia pode ser tentar aprender algo novo.

Isso porque a criatividade não se alimenta só de esforço e disciplina. O repertório também é fundamental. Quando estamos travados, muitas vezes é porque estamos esgotando as mesmas referências, girando em torno dos mesmos pensamentos. Absorver algo diferente—mesmo que não tenha nada a ver com escrita—pode ser o chacoalhão necessário para reorganizar a mente.

Pode ser qualquer coisa: assistir a um documentário sobre um assunto aleatório, tentar tocar um instrumento, explorar um novo autor, aprender a fazer pão. O ponto não é se tornar um especialista, mas se estimular de outro jeito. Às vezes, é num detalhe bobo, numa frase solta ou numa sensação inesperada que a faísca acontece.

Além disso, oficinas e cursos são uma forma muito boa de receber uma injeção de energia — não só de conhecimento e de ideias. Compartilhar tempo com pessoas que também estão envolvidas com processos artísticos opera mágicas que a gente nem imagina.

Ser o escritor que você é, não o escritor que gostaria de ser

Alguns dos textos que eu tenho aqui ressoaram muito fundo em mim e em você que me lê. É óbvio que eu acabo me pegando na armadilha de tentar repetir a fórmula.

O problema é que textos super emocionais sobre experiências de vida profundas não acontecem o tempo todo. Eles ficam maturando no fundo da mente e precisam do contexto emocional correto para existirem. Tem coisa que simplesmente não dá para fabricar.

Eu adoraria ser esse escritor que arranca suspiros toda semana, mas esses textos vêm quando querem e não dão a mínima pro meu calendário editorial.

Beleza, entendo.

O problema é achar que, se eu não consigo escrever aquilo, então não devo escrever nada. Especialmente porque o escritor que eu sou hoje—cansado, meio sem assunto, talvez até entediado—também tem algo a dizer. Mesmo que seja um texto menor, mais leve.

Afinal, escrever não é só sobre produzir grandes momentos. Também tem aquela coisa meio maratonista, de seguir escrevendo no modo econômico, só pra chegar ao próximo checkpoint. Faz parte.

Lembre-se por que você escreve

Os cronogramas arrancam de nós um aspecto importante da atividade criativa: a leveza de poder sentar para fazer algo sem objetivo nenhum. Escrever é bom porque é. Não precisa de mais nada além disso. Ao menos, esse é um dos motivos pelos quais escrevo: só é bom mesmo.

Mas, às vezes, pensando nos números, em como fazer a newsletter crescer, como monetizar o projeto, essa parte da escrita acaba soterrada. E, com isso, eu me desconecto dela. Escrever vira só mais uma tarefa na lista. Algo que faço porque devo, não porque quero. E aí, claro, a frustração cresce, a criatividade some, e a escrita, que antes era um refúgio, vira mais uma cobrança.

No Serviço de Entregas da Kiki, ela perde seus poderes justamente porque começa a encarar o voo apenas como um trabalho. Ela esquece o que a fazia voar antes disso. Durante o descanso, ela se reconecta com esse sentido mais profundo, e só então consegue recuperar sua habilidade.

A escrita funciona do mesmo jeito. Quando percebo que estou nesse ciclo, tento resgatar o que me fez começar. Escrever sem a preocupação de publicar. Anotar qualquer coisa só pelo prazer de brincar com as palavras. Voltar a ler por curiosidade, não por obrigação.

Lembrar que, antes de ser um trabalho ou um compromisso, a escrita era simplesmente um jeito de estar no mundo.

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