Eu só queria umas coisas bonitas

O tempo é muito bom em testar convicções.

Lá no começo do Youtube, uma das maiores tendências era o vlog. Todos os dias os criadores de conteúdo postavam sobre suas vidas e, dentro desse formato, tinha desde quem abrisse a câmera e tagarelasse certezas completamente infundadas até quem fizesse minidocumentários que coloriam o dia-a-dia e despertavam o sentimento de que a sua vida não tinha matéria prima para você tentar o mesmo. Eu detestava.

Apesar disso, agora, eu volta e meia me pego assistindo algo nessa linha, babando pelos lugares onde aquelas pessoas andam, as coisas que fazem e os objetos que compram. Tudo muito bonito, muito “estético” — para usar a palavra da moda.

Com a estética, tenho um relacionamento que posso classificar como complicado. Pra mim, a estética é como um rio que eu estudei sobre como navegar, mas cuja correnteza é forte demais para eu remar até onde realmente quero ir. Eu faço meu melhor, mas sempre volto duas casas quando vejo o quanto custam todas aquelas coisas bonitas.

Pra piorar, gosto de me considerar uma pessoa que milita contra o consumismo. E tenho a cara de pau de dizer isso enquanto babo em anúncios de toca-discos e pulo de página em página, procurando por um modelo para substituir uma maletinha que tenho há anos. Pois é, contradições.

Veja bem, eu nunca pensei que precisava trocar de aparelho. Embora eu soubesse das limitações dessa que tenho, a verdade é que fui diretamente influenciado pelo fato de que um amigo está em busca de um toca-discos. Antes dele manifestar sua insatisfação, eu ainda não tinha me conectado com esse desejo de uma forma tão intensa.

Quer dizer, é claro que carrego o fascínio por vinis por ter sido diretamente impactado pela onda vintage com os anos 70 que existia no começo dos anos 2000. O sucesso de That 70s Show implantou esse fascínio estético em específico tão fundo na minha mente que até hoje acho essa fase do século XX a coisa mais linda. Não sei se eu me consideraria uma pessoa retrô. Não chego a fazer cosplay, usando figurinos da época, mas não posso negar que eu me sinto atraído pelo look and feel da coisa.

A verdade é que não posso colocar a culpa inteiramente no meu amigo, afinal, ele só queria compartilhar comigo sua nova obsessão. Nós temos esse traço em comum. Como ele, eu fico enlouquecido quando quero algo. Aquele objeto de desejo me absorve completamente e eu devoro tudo o que consigo sobre aquilo. Quais as variações? Quais as possibilidades? O que estão dizendo a respeito? Onde consigo a melhor oferta?

Lentamente, construo cenários. Consigo visualizar perfeitamente como vai ser a minha vida se eu ostentar aquele objeto na minha sala. Um novo toca-discos em cima de um aparador, com os vinis dispostos embaixo, as caixas de som equilibrando a composição, uma de cada lado. Imagina só, quando alguém chegar em casa, as conversas que vou puxar, as histórias que vou poder contar. Dá para visualizar a cena: aponto para a estante, pego um álbum e começo a explicar de onde ele veio, onde eu estava quando comprei, qual a peculiaridade dessa edição, o que lembro quando ouço.

O desejo nunca vem desacompanhado, é quase um quadro que vamos pintando, uma pincelada depois da outra. Lá de longe uma voz começa a chamar bem baixinho e, com o tempo, vai ganhando frequências cada vez mais graves e agudas, até se tornarem tão urgentes quanto desligar o som quando começa uma música que detestamos.

Quando vem como uma possibilidade, o desejo se torna uma motivação, algo que nos coloca pra frente. Nesse nível, podemos dizer que o desejo é um sonho, uma ideia, uma curiosidade. E, com o tempo, vamos dando mais e mais materialidade, até que ele nasce na forma de algo que existe no mundo.

Costumo ter esse primeiro impulso de ser crítico, frear a pulsão que me faz ser atraído cegamente aos objetos. Claro que o bolso costuma ser quem me dá esse tapão — “sossega, moleque!” Mas, numa segunda análise, percebo que mesmo quando o orçamento permite, me pego cauteloso. Posso? Devo? Não preciso lidar dessa forma, eu sei. Mas diga isso aos anos e anos contando as moedas pra ver se dá pra comprar um lanche ou uma garrafa de alguma-coisa-alcoólica para beber na faculdade. Certos hábitos são difíceis de se perder.

O desejo que aqueles vlogs perfeitos me causam pode vir acompanhado de uma certa frustração pela distância que tenho deles. Mas, ao mesmo tempo, também pode se tornar uma vontade de expressão. Sim, eu desconfio de tudo que impulsiona o consumo, mas ao mesmo tempo, não posso negar um efeito gostoso quando vejo minhas plantas, meus quadros, meus livros, meus vinis. São pistas, indicativos, sobras de quem eu sou. Sinto algo especial quando estou dentro dessa câmara de objetos só meus.

Sentindo um profundo desejo, eu já escrevi, desenhei, cantei e fiz coisas que foram úteis não só pra mim e pra minha vida humana, mas também para outras pessoas. Ao menos, é o que gosto de pensar.

Quando criança, a primeira arte com a qual me envolvi foi o desenho. Eu adorava passar horas e horas debruçado, ampliando figurinhas dos Cavaleiros dos Zodíaco. Depois, comecei a desenhar meus próprios personagens e paisagens. Mas, eventualmente, abandonei. Recentemente, no entanto, voltei a ter o desejo de explorar artes visuais. E, com isso, veio o fascínio pela ideia de acumular cadernos, pincéis, lápis e canetas. O processo, então, se iniciou: visitas a papelarias, vídeos e mais vídeos no Youtube, buscas e mais buscas pela Amazon.

Mas o desejo vira sofrimento à medida que adicionamos mais e mais camadas de fixação. Quanto mais a sua realização se torna inegociável, maior o sofrimento decorrente de não ser capaz de torná-lo uma realidade.

Como qualquer um, óbvio que eu quero satisfazer até o menor dos meus desejos. Mas, ao mesmo tempo, percebo como fico frágil e desprotegido, quanto mais me apego à ideia de que tudo precisa ser do jeito que eu montei na minha imaginação.

Outro dia, estava eu no supermercado e não pude deixar de notar o desespero dos pais enquanto a criança se jogava no chão, querendo um biscoito. Qualquer um de nós poderia ser uma criança chorando no supermercado da vida porque não pode ter o biscoito. Alguns de nós são.

Não consigo distanciar meu raciocínio das vezes nas quais me apaixonei, por exemplo. Vejo muita gente falando sobre as borboletas no estômago, as conversas intermináveis, os suspiros de saudade. Em muitos aspectos, o desejo por pessoas se constrói de forma similar ao desejo por objetos, mas muito mais intenso. Porém, pessoas não são objetos. Então, quando as pessoas fazem pessoisses, vão embora ou simplesmente não retribuem… uau, a dor.

É até interessante. O desejo é, ao mesmo tempo, uma força de atração e de repulsão. Quando ele se instaura, você tanto quer se mover em direção ao que quer, quanto cria uma situação que não quer — e foge dela.

O mais curioso é que esse processo se repete dia sim e dia também. E, ainda assim, não é normal passar pela minha cabeça o pensamento de que talvez eu não precise realizar cada desejo que tenho. É importante perceber que decidir me abster porque eu já não conseguiria mesmo não é lá o que podemos chamar de anticonsumismo. Existe uma diferença entre, do alto da minha sabedoria, notar isso e ser limitado por um fator externo como o dinheiro. Então, só pra variar, pode ser uma boa ideia desobedecer, não seguir o impulso. Mas decidir mesmo, fazer valer minha autonomia contra a imposição cultural que me faz sempre querer mais. Eu não preciso seguir cada tendência que se apresenta, para parecer mais jovem, mais bonito, mais inteligente, mais interessante.

Afinal, sou muito bom em gostar do que não me faz lá muito bem. Então, apesar da criança mimada em mim chorar desesperada, ela com certeza vai passar bem melhor sem certas coisas.

Outras coisas. Não meu toca-discos, meus cadernos, meus pincéis, meus quadros, minhas plantas e meus instrumentos. Deles eu realmente preciso pra gravar meu vlog.

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