Sempre ouvia falar sobre como decidimos nossas compras de maneira puramente emocional, mas nunca levei tão à sério até o dia em que coloquei no carrinho de compras da Amazon uma cafeteira com timer.
Enquanto rasgava a fita crepe que lacrava a caixa da cafeteira, sabia exatamente o que estava procurando — e não era um litro de café para turbinar minha produtividade. Eu não comprei uma cafeteira. O que eu comprei foi o sentimento de acordar com cheiro de café. Eu comprei uma mãe, pra me reconfortar numa reprodução mecânica do carinho matinal que agora está a três mil quilômetros de distância.
É meio triste, eu sei. Mas, ao mesmo tempo, tem uma magia em acordar e descobrir que algo mudou sem a sua intervenção.
Se você sempre morou com família, amigos ou conje, talvez não tenha noção disso, mas quando você vive sozinho, nada se move — quer dizer, ao menos nada deveria se mover, mas não podemos também duvidar do sobrenatural. De qualquer forma, considerando que a sua casa não tenha nenhuma manifestação espiritual incomum, as coisas não deveriam sair do lugar sem a sua ação, de tal forma que eu posso dizer o que vou afirmar sem medo de errar.
A melhor coisa sobre morar sozinho é que tudo fica no lugar onde você deixou.
Você não precisa lavar a louça de refeições que não fez. Ninguém deixa o tubo de creme dental vazio em cima da pia. Ninguém some com seus livros. Ninguém liga a TV no jornal pela manhã, nem coloca músicas que você não queria ouvir. Nada de panelas batendo quando você está dormindo e nem sapatos jogados pela casa.
Morando sozinho, dá pra comer o que você quiser, na hora que bem entender. Você não precisa negociar o que vai assistir, nem qual música quer ouvir. Você pode jogar videogame ou ler um livro quando der na telha. Pode ficar no sofá, na cama ou no tapete. Ninguém vai interferir.
Eu até queria um cachorro ou um gato, não nego, mas a alergia me dita que é melhor não. Então, se você, como eu, não tiver nenhum animal de estimação, suas plantas também vão ficar sempre intactas. Nenhum rodapé vai ser devorado e nenhum sofá vai ser dilacerado pelas garras de um felino.
Mas a pior coisa sobre morar sozinho é que tudo fica no lugar onde você deixou.
Às vezes, é como se tivessem instalado uma gangorra de emoções. Percebo a passagem de tempo à medida que os ânimos sobem e descem, quando vou repetindo os ciclos de desânimo e disposição. Num dia, acordo e limpo tudo, recolho o lixo, vendo objetos que não me servem mais, limpo gavetas e tiro a poeira. Em outro, sou o puro abandono que se manifesta na forma de todas as coisas que deixo largadas e das plantas que vão murchando, esquecidas.
As mesmas louças, sapatos, livros e roupas que você espalhou continuam exatamente lá. Não vai ter comida, nem sons e nem cheiros inesperados. Tudo do jeitinho que você deixou. Inclusive a sua noção sobre quem você é.
Uma grande parte de quem somos é construída em relação. Eu sou o irmão do meu irmão, o amigo do meu amigo, o filho da minha mãe. Eu sou a pessoa com quem você bebeu na semana passada. Eu sou a pessoa que ouviu o quanto você queria conseguir a vaga depois daquela entrevista ótima. Eu sou a pessoa que tocou guitarra no seu casamento. Eu sou quem foi com você naquele primeiro date que nos encheu de esperança. Todas essas relações são confortáveis. É aconchegante quando nos sentimos o algo de alguém.
Mas morar sozinho me dá muitas oportunidades de descobrir quem eu sou quando ninguém está ali pra reagir às minhas histórias. Sem relação, sem protocolo, sem máscara. E agora?
Quando você vive sozinho, suas dores são vividas sem testemunhas. Você chora e seca suas próprias lágrimas depois que elas cessam — por esgotamento ou por terem lavado sua alma. Qualquer pessoa que já chorou sem ter alguém para colocar as mãos em suas costas sabe que o choro solitário é diferente. Ninguém pra consolar, pra dizer que vai ficar tudo bem — mesmo que você saiba que não é verdade. Assim, só o choro em si preenche o espaço. É o próprio choro que serve de consolo. Ali, não tem nada além da experiência crua de uma emoção intensa. Então, cada vez que os soluços se interrompem, cada vez que o urro visceral silencia, você arranca mais uma camada da cebola e fica mais próximo do que está lá dentro. Tem um silêncio pós-choro muito revelador, muito poderoso. Não tem outro choro que faça isso. Não tem outro choro que ensine tanto.
Ultimamente, andei dizendo algumas vezes isso: eu não estou apenas sozinho, eu estou em retiro. É bem como me sinto quando caminho em direção à praia para treinar no final do dia. Uma espécie de monge urbano, fazendo um experimento de autodesconhecimento. Encarando o vazio, identificando as sombras na parede. Quebrando pequenos padrões, questionando, apontando os demônios escondidos atrás da estante e embaixo da cama. Quem está aí?
Quando minha última relação terminou, percebi bem esse efeito. Demorei um tempo até sentir que podia alterar a casa do meu jeito. Alguma coisa em mim achava estranho não ter que consultar o que a outra pessoa pensava da ideia de colocar um quadro do Toshi Yoshida na parede. Agora, de repente, eu poderia simplesmente pendurar o quadro. Agora, eu posso sentar em silêncio pelo dia inteiro, imóvel. Meditando, pensando, escrevendo. O prazer nesses momentos dá até um nível de culpa, afinal, tudo na nossa cultura nos faz procurar satisfação na presença dos outros. Uma pessoa que consegue ficar em paz com a própria solidão é, talvez, um perigo ao sistema. Ninguém vende nada para alguém que não está insatisfeito.
Mas isso também vem em fases. Eu me sinto só em diversos momentos, com certeza. Eu me sinto só quando faço café e percebo que fiz o suficiente para duas pessoas, apesar de estar morando sozinho há dois anos. Eu me sinto só quando é sábado de manhã e não tenho com quem fazer planos sobre onde ou o quê comer. Às vezes, me sinto só quando penso que gostaria de conhecer um novo bar que abriu, mas preciso passar por todo um ciclo de conversas e encontros, para a outra pessoa não sair correndo, achando que estou emocionado e “calma lá, isso está indo rápido demais”.
Eu me sinto só quando chamo uma pessoa querida para conversar sobre os enroscos da vida, mas ela precisa cuidar do próprio trabalho, família ou relacionamento. Quando eu sento no banco da praça, tomando uma água de côco, enquanto olho as crianças rolando na areia do parquinho ou se balançando como se tivessem ossos de borracha — gatilho de ansiedade. Não vou negar, é uma das coisas que mais sinto falta em ser criança: a entrega delas aos amigos que conheceram há meia hora.
Há anos vivo longe da minha cidade natal, da família e dos amigos de longa data. Meus encontros com adultos, atualmente, se assemelham bastante a encontros de parquinho. Algumas vezes, conexões realmente profundas se estabelecem em meia hora, mas a idade adulta adiciona uma camada de constrangimento quando se tenta repetir a dose dias depois.
Ainda assim, existem momentos fantásticos onde se sentir tão só é maravilhoso. A chavinha vira e a solidão se torna outra coisa. Talvez seja isso que chamam de solitude.
Viver assim é bonito e feio. É feliz e triste. É doce e amargo.
Pensando bem, não tem nada de muito especial. O quê, na vida, vem sem sua dose de bate-e-assopra?
Às vezes, parece que até eu continuo aqui, no exato lugar onde me deixaram. Não me movi nem pra frente e nem pra trás, não fui devorado por nenhum animal, não fui levado por ninguém pra nenhum outro canto.
Morar sozinho, ser adulto e tomar conta da própria vida tem disso. No final das contas, tudo fica lá, no exato lugar onde você deixou.
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