Existe um discurso no meio da música popular, de que não é necessário aprender teoria musical. Sendo bem honesto, não precisa mesmo. Você pode pegar um instrumento, tocar umas notas dentro de um ritmo e a música acontece.
Afinal, a música em si foi criada dezenas de milênios antes de termos o que hoje chamamos de teoria musical. Não podemos dizer que a música é dependente da teoria para existir, de forma alguma.
Mas com esse argumento em mãos, algumas pessoas extrapolam o ponto e começam a dizer não só que a teoria musical é desnecessária, mas que limita e atrapalha a criatividade de um artista.
De Beatles a Billie Eilish, é comum ouvir sobre um sem número de grandes artistas que não conheciam teoria musical e, mesmo assim, tiveram longas e geniais carreiras.
Ainda assim, isso é tomar a exceção pela regra. Na prática, deixar de aprender teoria musical tem um potencial bem maior de limitar o artista do que o contrário.
O mesmo ocorre com a escrita.
Uma olhada rápida em um ambiente onde os escritores possam manifestar suas opiniões a respeito do ofício e logo começa a surgir a exaltação à inspiração, aos momentos mágicos de observação do cotidiano, ao prazer de colocar os pensamentos no papel e como ninguém precisa de regrinhas de escrita, porque só quem gosta delas são os cagadores de regras.
É claro que existe uma distinção a ser feita. É mais fácil uma pessoa perceber que precisa estudar música do que escrita. Pois, enquanto a música é uma linguagem acessível a qualquer um com a inclinação a tentar, você não vai sofrer nenhuma condenação se não souber afinar um violão. Já a escrita é ensinada nas escolas e é uma habilidade fundamental para navegar o mundo. Claro, mais a leitura do que a escrita, em si, mas muita gente vai se negar a dizer em voz alta que não sabe escrever porque em certos meios até sua credibilidade pode ficar abalada.
Ainda assim, a escrita da qual fazemos uso aqui no Substack ou quando escrevemos um livro é outra coisa, bem distante do que aprendemos com a tia da quarta série. Normalmente, quando alguém diz que não sabe escrever, está se referindo a esse tipo de escrita, a que chamam de escrita criativa, de arte. Mas, como temos essa base, também é fácil cair no engano de achar que a escrita está aí, pronta. É só rabiscar ou digitar que ela vai sair.
E, de fato, ela sai. Porém, por mais talentoso que seja, se seguir essa abordagem, logo vai se deparar com as suas próprias limitações. Basta transformar a escrita em rotina pra notar que o buraco é mais embaixo e a terra parece estar cedendo.
Caso você seja cabeça dura o suficiente para passar pela vergonha e humilhação desse momento, sobra tatear no escuro até achar um caminho ou procurar estudo.
O ato de estudar teoria sobre música ou escrita pode ser bastante chato, vamos convir. As primeiras lições são regras básicas que servem, justamente, para mapear os princípios fundamentais daquela arte. E, por isso, é quase uma conclusão natural achar que ali estão as cercas pelas quais você vai ser limitado, como se tivessem espalhado placas de “afaste-se” por todos os lados — impressão que é reforçada pela forma como essas técnicas, muitas vezes, são ensinadas por coaches de marketing.
Ainda assim, podemos dizer que existe a forma como uma informação é passada e a forma como ela é recebida. Não se pode negar que quem fala importa, pois influencia diretamente na maneira como a regra ou técnica é transmitida. Mas por mais que a linguagem e a metodologia do ensino possa ser questionada, muitas vezes, também existe uma indisposição por parte de quem está no papel de receptor. Então, mesmo fontes genuínas são deslegitimadas, antes mesmo que tenham a chance de chegar a quem poderia se beneficiar.
Se você somar essa falha na comunicação a uma compreensão limitada do estudo da técnica na arte, o problema vai tomando forma. É difícil uma pessoa ter o conhecimento prévio de que ao avançar, as exceções vão aparecendo e, com isso, se desenha um mapa que talvez tomasse anos ou décadas para descobrir por conta própria.
Sair do básico em qualquer estudo inclui começar a ver nuance. Mas não dá para enxergar nuance quando o conhecimento é enlatado para caber no reels e distribuído de forma aleatória, para atender a um calendário editorial que, por sua vez, é feito para agradar algoritmos. Muito do ranço generalizado também se deve a essa falta de estrutura.
Dando como exemplo a harmonia funcional, é interessante como o começo é cheio de regrinhas que soam como pequenas ditaduras. Você tem um tom, um modo, as notas dentro da escala. Se fugir, está tocando “errado”. Mas quando avança, você vai aprendendo os nomes das diversas formas de sair ou de colorir o que foi estabelecido lá atrás. Depois de um certo tempo, você está com uma lista de ideias que nunca tentou antes — e que agora pode experimentar.
Posso afirmar isso porque vivi essa experiência na pele, tanto de um lado quanto do outro da discussão. Fui autodidata a vida inteira em tudo o que me meti. Desenho, fotografia, canto, guitarra… eu gosto de explorar possibilidades artísticas e usava o mesmíssimo discurso que aponto agora.
Especificamente na música, alguma coisa me impedia de procurar estudo formal — cof! Arrogância! cof! — Segui assim por anos, até que comecei a estudar e depois, entrei no bacharelado em canto popular, que cursei por um ano até o boleto do aluguel exigir que eu parasse. Posso afirmar, sem medo de errar, que em um ano estudando adequadamente, eu evoluí o que não consegui em uma década e meia de cabeçadas no escuro.
Quanto mais um artista aprende, mais cores ele consegue adicionar à sua paleta de possibilidades. Nesse sentido, a teoria na música ou na escrita, aumenta a criatividade, não reduz.
Um artista ganha muito ao aprender as técnicas tradicionais do seu campo, pois elas se transformam em repertório. Depois, ele é livre para fazer o que quiser. Mas, agora, a diferença principal está na intencionalidade.
Eu tinha uma professora de canto que soltava uma frase excelente em defesa do estudo da música: “a técnica é para os dias ruins”. Segundo ela, quem não conhece a técnica, conta com a sorte. Quando a energia abaixa e o corpo não colabora, a performance fica afetada e a pessoa simplesmente não canta — ou, no mínimo, canta mal e pode causar danos ao aparelho fonador. Qualquer escritor conhece algo similar na forma de bloqueios criativos ou textos frouxos, sem brilho, que vem nos dias que tomamos um ghosting da musa. Nesses dias, saber as fórmulas para se começar um texto, como desenvolver, como fechar, ou quais estruturas usar pode ser a salvação.
É claro que a escrita é uma arte e, como tal, não deve ser limitada em suas possibilidades de expressão. Definitivamente, não estou me contrapondo a isso. No entanto, a escrita também é um ofício — e, como tal, tem técnica. Assim como a teoria musical foi mapeada ao longo de milênios de tentativa e erro, a escrita também passa por esse processo.
Pode soar paradoxal quando colocamos um aspecto em sobreposição ao outro, mas na verdade, não é. O ofício pode e deve servir à expressão.
A Ursula K. Le Guin, no livro The Wave In The Mind, fala disso com uma eloquência que eu jamais vou ter.
“Todo trabalho altamente qualificado, todo verdadeiro ofício e arte, é feito em um estado onde a maioria dos aspectos se torna automática através da experiência, através da total familiaridade com o meio, seja o meio a pedra do escultor, ou o tambor do baterista, ou o corpo da dançarina, ou, para o escritor, os sons das palavras, os significados das palavras, o ritmo das sentenças, a sintaxe, e assim por diante. A dançarina sabe onde seu pé esquerdo deve ir, e o escritor sabe onde a vírgula é necessária.”
Ganhar essa familiaridade envolve talento e prática, mas o estudo pode cortar caminho.
Não faz sentido imaginar que um músico vai ter de descobrir de novo tudo o que custou milênios de história da música para ser escrito e deliberado. A mesma coisa com relação à escrita. Outros experimentaram antes de nós, por que não olhar para isso e aprender o quanto pudermos?
Todo estudo acompanha um desenvolvimento técnico. Técnica, é um outro jeito de dizer que você descobre padrões. Esses padrões se transformam em “regras”. O pulo do gato é saber que nenhuma regra é obrigatória.
Na escrita, temos o exemplo do “show, don’t tell”, algo como “mostre, não conte (ou não diga)”. Essa é a lição número um de 90% dos cursos de escrita. O princípio é que você descreva de forma a suscitar os sentimentos no leitor, ao invés de dizer o que você está tentando fazer. É uma regrinha que até faz sentido, mas que se torna um problema se você banir o “dizer”. A verdade é que, sem “dizer” em ocasião alguma o que você está tentando transmitir, talvez termine com um texto que dá voltas e é prolixo desnecessariamente. A moral da história é que tudo tem seu lugar.
Porém, dado que a regra está aberta a exceções não quer dizer que ela é inútil ou que em uma boa porcentagem dos casos não seja mesmo melhor evitar “dizer”.
A questão central não é se a regrinha é necessária ou não, mas sim como ela pode ser uma ferramenta útil quando bem usada. Tanto na música quanto na escrita, as técnicas servem como uma base que permite ao artista explorar e expandir suas capacidades criativas. Elas fornecem ferramentas que podem ser usadas, adaptadas ou até mesmo ignoradas.
Quando nos dispomos a estudar, não estamos só absorvendo informação; estamos nos equipando para compreender melhor nossa própria arte e encontrar nossa voz única dentro dela.
Portanto, o aprendizado da teoria não é uma prisão, mas uma chave que abre portas para novas possibilidades. Ele nos prepara para aqueles dias em que a inspiração falha, garantindo que ainda possamos criar com qualidade e intenção.
Assim, ao invés de ver as regras como inimigas da criatividade, podemos abraçá-las como aliadas que nos permitem navegar com mais liberdade e segurança pela nossa expressão artística.
Deixe um comentário