O que a voz entrega que o rosto não mostra

O dia, para mim, se anuncia acusticamente.

Quando acordo, eu obviamente abro os olhos, mas o que me dá o senso de estar em um local familiar — ou não — é a paisagem sonora que meus ouvidos captam nesse momento. Os carros na avenida próxima, o ônibus passando no quarteirão de baixo, os vizinhos saindo para trabalhar, as crianças chegando na escola e os adolescentes rindo alto, zoando uns aos outros, mas principalmente, os pássaros — os mesmos de sempre, todos os dias. Eu não sou nenhum ornitólogo, mas sempre estranho quando estou em um outro lugar e não ouço os pássaros específicos da vizinhança.

Muito da minha experiência de vida se dá por meio dos sons.

Às vezes, tenho dificuldade de lembrar dos rostos de pessoas que amo. Mas tenho um registro claro das vozes dos meus amigos, do meu irmão, do meu pai, da minha mãe, da minha tia. Eu guardo uma foto auditiva do jeito que eles falavam quando nos conhecemos e como os anos mudaram sua personalidade. É na voz que se expressa, pra mim, essas mudanças, no tom e no ritmo da fala.

Recentemente, tive dois reencontros com pessoas que eu conhecia, mas não via desde a adolescência. Em uma das situações, fiquei com um quentinho no coração de ouvir praticamente a mesma voz, os mesmos trejeitos de fala, os mesmos cacoetes. Já na outra, fiquei fascinado por ver como a bobeira adolescente deu lugar a uma pessoa muito mais centrada, capaz de falar de um local de autoridade e segurança sem esforço algum. Dava pra ver que, de alguma forma, aquela pessoa incorporou algo potente ao longo dos anos.

É bonito ver alguém que consegue se preservar, apesar de tudo o que a vida vai fazendo com a gente. Mas também é fascinante perceber como a voz pode carregar o que alguém se tornou. A tensão ou a leveza, a firmeza ou a hesitação — tudo está ali, na forma como a fala se desenha no ar.

Poucas coisas me inspiram mais confiança do que uma pessoa que tem uma voz suave, bem colocada. Eu percebo o estado mental básico de alguém apenas entendendo como o aparelho fonador daquela pessoa está tensionado ou não enquanto ela se comunica. Qualquer um pode fazer isso se prestar atenção um pouquinho. Carência, raiva, apego, ansiedade, medo… está tudo lá. Quando a emoção muda, a voz muda junto, ela se aperta, ela treme, ela sobe ou desce de tom.

Eu não consigo adivinhar sempre a profissão de uma pessoa pela voz, mas posso garantir que existe a voz de psicólogo ou terapeuta. Se você já fez terapia alguma vez, provavelmente conhece também. Aquela voz confortável, mas distante. Um abraço que não encosta.

Uma vez, saí com uma terapeuta (não a minha, óbvio) e era muito interessante como ela sem querer ligava o modo psicóloga quando falava em qualquer assunto relacionado. Era a voz que entregava.

Falando em terapia, esse processo de entendimento do som e das vozes das pessoas se tornou muito mais claro pra mim à medida que fiz aulas de canto. Tive muita sorte com as minhas professoras, cantoras de ópera absurdamente experientes, com carreiras incríveis. Foi com elas que comecei a entender, em primeiro lugar, a minha própria voz.

Eu nunca esqueço de uma aula, em específico, já no bacharelado em canto popular. Eu estava praticando uma música que pedia mais projeção nos agudos, mas a tensão me pegava uma ou duas notas antes. Eu ficava ansioso de antemão e não conseguia relaxar o suficiente para deixar o ar passar por mim desobstruído. Então, eu não chegava na nota e, depois, o autoflagelo começava. A professora, num momento de genialidade, me disse: “Você está acostumado a te mandarem calar a boca. Aqui eu quero a sua voz de verdade”.

Eu não faço ideia de como ela chegou a essa conclusão, mas essa é uma experiência que eu, de fato, tinha. Quando adolescente e até adultinho, seja em casa ou na rua, eu constantemente ouvia que precisava falar mais baixo. Eu não tinha controle algum e sei como é chato alguém que fala gritando. Mas, como a gente costuma assimilar certas situações de um jeito torto, isso não virou só um “calma, fala mais baixo” em mim. Ao invés de relaxar e deixar a voz naturalmente sair mais leve, isso gerou um efeito emocional de autorrepressão constante. A voz ficou presa em algum lugar entre a vontade de me expressar e o medo de incomodar.

O canto, então, não era só técnica. Era também uma maneira de desaprender essa contenção e reaprender a ocupar espaço com som.

Infelizmente, um ano depois, com o prolongamento da pandemia e a dificuldade de manter as contas pagas, tive que abandonar o bacharelado em canto. Ainda assim, essa fala dela ressoa constantemente, inclusive na escrita.

Eu passei muito tempo trabalhando para outros projetos, escrevendo para expressar a voz de terceiros. Os assuntos escolhidos ou o jeito de escrever, quase sempre, era orientado a preservar uma presença de marca ou para simular a personalidade de alguém.

Quando tive a oportunidade de começar a escrever por conta própria, não só assinando com meu nome, mas também livre para fazer o que eu quisesse, não foi automático. Eu ainda conseguia ouvir os direcionamentos, as opiniões, as expectativas.

Existe um conforto bizarro nisso, de saber o que fazer, o que é esperado. Por outro lado, cresceu em mim um nó na garganta de tudo que eu não dizia. Mesmo sem essas presenças me ditando regras, eu escrevia como se estivesse falando em voz baixa para não incomodar — mas não só isso. Eu sentia que era melhor pegar as ideias dos outros numa prateleira do que apostar nas minhas próprias. Foi um tempo até eu entender como escrever sem pedir desculpa.

Hoje, quando acordo e ouço os sons do dia, às vezes penso como minha voz também faz parte da paisagem sonora que chega aos ouvidos de outras pessoas. Seja a voz literal, que fala e canta, mas também a voz escrita — essa que chega como uma partitura do pensamento, registrando o que pensei para que outros possam interpretar, como um cantor ou instrumentista.

Acho incrível observar como a voz carrega o que a gente se tornou. Ela denuncia tanta coisa, de forma gritante mas também sutil. E talvez, mais do que qualquer outra coisa, ela aponta para quem ainda estamos nos tornando.

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *