Romantizando a vida tranquila

“Quão melhor é o silêncio; a xícara de café, a mesa. Quão melhor é sentar-me sozinho como a solitária ave marinha que abre suas asas sobre a estaca. Deixem-me ficar sentado aqui para sempre com coisas nuas, esta xícara de café, esta faca, este garfo, coisas em si, eu mesmo sendo eu mesmo.” —Virgínia Wolf, As Ondas

O Ayrton Senna dizia que a chuva era o grande nivelador na Fórmula 1. Para ele, quando chovia, os carros todos ficavam iguais e o que se destacava era a habilidade de cada piloto. 

Eu gosto de fazer algo que deixaria qualquer bom debatedor irritado: tirar a frase de contexto para ver se a verdade contida nela ainda se aplica. Como aqui trabalhamos com uma metodologia galgada em séculos de filosofia de boteco, o rigor argumentativo não é exatamente a prioridade. O que importa é que pareça funcionar para que o papo continue.

É por isso que eu acho que consigo entender, mais ou menos, o que o Senna quis dizer, mesmo sem nem ter tirado CNH.

A vida cotidiana não é nenhuma corrida — ao menos, não deveria ser —, mas de um modo geral, você e eu, listados no Censo do IBGE como PEA (Pessoa Economicamente Ativa), estamos na famigerada rodinha do hamster.

Para nós, a semana passa, pulando de dia em dia. Segunda, terça, quarta. Na quinta, a ansiedade já começa a despontar. É hora de começar a se preparar para o final de semana, afinal, você precisa aproveitar cada segundo do tempinho que lhe foi reservado para chamar de seu. Só seu. Sem trânsito, sem chefe, sem “hey, você consegue falar cinco minutinhos” que se estende por uma hora. Seu tempo vai ser seu.

Talvez, por isso, exista esse grupo de pessoas que têm os seus finais de semana lindos e repletos de compromissos instagramáveis. Elas colocam dedicação para extrair ao máximo dessa fatia de vida e, sendo sincero, não consigo nem julgar. Faz sentido não desperdiçar um recurso escasso.

No meu caso, aproveito o tempo extra para, enfim, ser livre. É quando me permito viver minha revolução pessoal. Onde há agito, eu procuro silêncio. Onde há pressa, eu faço lento. Quando querem mais, eu busco menos.

O domingo, o dia oficial da preguiça, me vê passando café, pegando um livro, ouvindo uma música tranquila enquanto caminho em direção à minha rede. A única correria é quando me inspiro e procuro meu computador para anotar antes que eu esqueça a ideia — se você, como eu, gosta de registrar pensamentos, sabe que eles nunca se repetem. Ou você registra na hora, ou vai ficar com uma reprodução piorada do que você conseguir se lembrar depois.

Continuando, apesar de não me considerar parte do grupinho mais agitado, esse final de semana eu tinha planos. Pretendia, sim, me dar a oportunidade de sair, ver o céu, permitir ao vento me trazer o cheiro de maresia. Num raro momento, chamei amigos e marquei o rolê. Tudo o que eu precisava era de um dia de sol. Afinal, sou um ser misterioso, multifacetado. Somos feitos das nossas contradições, não é mesmo?

No entanto, choveu.

E a chuva, como na fala do Senna, nivela o introvertido e o extrovertido.

Se antes eu estava propenso a me arriscar no terreno das pessoas extrovertidas, agora elas vão se ver na obrigação de provar do meu estilo de vida. A menos que você seja uma pessoa persistente ao extremo, seus planos de praia, parque, passeio com o cachorro ou calçada de boteco estarão comprometidos pela chuva. Confesso, tem um lado tirano em mim que gosta da ideia. Agora, eu sou o padrão. A sociedade, enfim, se curvou aos meus desígnios.

Extrovertidos provarão um dia de sossego e quietude. Tenho certeza que vão entender o que nos move — pois é, considerando que está lendo até aqui, eu já coloquei você no mesmo time que eu.

Com tempo, talvez, eles até comecem a gostar da tranquilidade. Afinal, quando chove, a natureza oferece uma rara oportunidade na vida urbana ultraconectada de entrar em contato com a solitude, o silêncio, a paz.

A solitude não é bem uma emoção, é um estado do ser. É fácil de entender uma vez que ela te abraça. É um mini apocalipse que reduz o tudo ao nada, deixando só o espaço. É quando o silêncio ao redor acontece também dentro. É quando dá para ouvir o tempo e não sentir a agonia de tentar avançar ou segurar os minutos. 

Já a solidão, muitas vezes, é o que faz as pessoas fugirem assustadas da solitude. Sim, tanto uma quanto a outra estão no território semântico do “estar só”, mas nem uma nem outra são a mesma coisa que o estado físico do isolamento. Você pode sentir solidão sozinho, mas também pode sentir solidão no meio de um churrasco em família — as pessoas que, provavelmente, você conhece toda sua vida. Culpa, tristeza, vazio, raiva. A solidão é um estado composto, complexo. A solitude também, mas num outro espectro.

Na solitude, a composição de sentimentos tende a uma combinação mais agradável. Conexão, liberdade, leveza. É certo que qualquer estado emocional pode proporcionar uma ignição criativa, mas a solitude tende a ser uma base melhor para a criatividade recorrente. Você não está alucinando em desespero e nem tremendo de euforia. Dá para pensar, relaxar, respirar e esperar vir a ideia que estiver ao seu redor esperando a oportunidade de aparecer.

Talvez, com a dose certa de chuva lá fora, alguns extrovertidos possam descobrir o prazer de uma epifania. Aquele tesão literário de encaixar uma sequência de pensamentos e palavras que vão se esfregando até chegar a conclusões e entendimentos novos.

Uma das graças de viver é que a menor das folhas da jibóia na sua sala pode se tornar uma ciência inteira a ser explorada, se você quiser. Basta a curiosidade e a repetição. A maioria das pessoas não lida bem com o tédio porque esperam que o estímulo venha de fora, não de dentro. A curiosidade delas não é ativada pela curiosidade interna, pela vontade de saber, de experimentar e de brincar. Elas precisam que algo mude na frente dos olhos para gerar a fagulha interna. Mas a fagulha interna não precisa de nada fora, dá para acender de propósito.

A relação entre solidão e solitude também é um pouco assim. A solidão vem do sentimento de que algo está faltando lá fora. Companhia, afeto, conexão, algo para buscar. Cada pessoa sente de uma forma diferente. E, ainda que todo mundo saiba o quanto dói, ninguém pode dizer que a sua solidão é igual à do outro.

A minha solidão tem seus momentos. Ela sempre vem em momentos inconvenientes. Jamais se anuncia e, quando chega, não sabe a hora de ir embora. Eu me orgulho de ser alguém que ama ficar sozinho, mas nem assim a solidão me evita.

Apesar de ser um estado mais difícil de alcançar, a solitude é algo que dá para aprender a ligar. Quando você pratica fazer suas coisas sem depender de ninguém, de repente, estar só se torna algo natural e até preferível. Lembro de um colega de trabalho que tinha tanto medo de ficar só que ele implorava por companhia na hora do almoço. Uma vez, num desses dias de papo furado no expediente, ele disse que achava triste quem ia no cinema sozinho. Por coincidência, naquela mesma semana, eu tinha visto um filme e adorado a experiência de sair do cinema e ficar com a sensação que o filme me deixou. Ouvindo ele, eu achei o contrário, que triste era não conseguir ficar consigo mesmo. Mas quem sou eu pra julgar, né?

Talvez, muita gente pense que um domingo chuvoso possa ser um desperdício de tempo livre. Menos fotos do seu cachorro no parque, menos praia com os amigos, menos chopp artesanal, menos samba na rua. Mas enquanto meu olhar pula pela janela e meus ouvidos levantam ao som dos pingos na varanda, é difícil negar o aconchego que me toma.

Extrovertidos que me perdoem, mas a tranquilidade está falando e a mensagem é clara: o que não falta é conforto em desacelerar e encontrar prazer na própria companhia, mesmo que isso signifique ficar em casa em um dia chuvoso.

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