Tudo é pela última vez

Outro sábado dentro de casa. Dessa vez, recebo a notícia de que uma amiga de longa data veio cantar na cidade. Vitória não é um roteiro muito comum para os meus amigos de São Paulo, então, esse evento já tem um diferencial. A notificação veio com um convite para ir ao teatro vê-la. Faz tempo que não saio de casa. Todo mundo sabe que a vida é feita de altos e baixos e, agora, estou numa das fases de baixa. Ser demitido abruptamente me trouxe a uma situação em que cada centavo conta. Essa tem sido a justificativa perfeita para me isolar ainda mais do mundo.

Além disso, estou com uma antipática e persistente sinusite. Ela vem nessas horas. Já notei que ela gosta de me pegar quando minha energia não anda lá das melhores. Sabe aquele personagem que, não contente em ver o herói derrubado, vai lá e ainda coloca a bota na cara dele? Essa é minha sinusite. Ela não quer minha derrota, quer minha humilhação.

Ninguém faria o esforço de sair nessas condições. Começo a escrever uma mensagem de cancelamento, justificando minha ausência pelo terrível mal-estar do dia. Quando escuto aquela história de que ninguém sofre como um homem gripado, rio e concordo. Não estou gripado, mas a regra se aplica.

No entanto, devo dizer: enquanto todas as perspectivas indicavam que em breve eu escreveria aquela mensagem triste de cancelamento, fui atravessado pelo pensamento “pode ser a última vez”.

Das consequências da demissão, a incerteza é a que mais está mudando minha perspectiva. É verdade que ninguém nunca sabe o que vai acontecer a seguir. Mas, nesse momento, eu não consigo nem ter a ilusão de que sei.

Eu estou no que podemos chamar de estado intermediário. Bem no meio. Como sabemos, as pessoas vestem sua posição profissional como uma identidade, um rótulo que facilmente define quem elas são, a qual lugar pertencem e como contribuem pra esse mundão louco. Agora, eu não faço ideia de nada disso.

Talvez, essa seja uma amostra grátis de ter consciência da própria mortalidade. Eu não sei o que vai acontecer. Talvez eu não esteja aqui amanhã. Não faço ideia se vou ter a oportunidade de dar um abraço na minha amiga outra vez. Pode ser que essas condições se desfaçam e, como duas bóias no oceano, a gente vá se distanciando mais e mais, sem que a maré repita o movimento de ondas que possibilitou esse encontro.

Existe uma chance de que eu venha a me mudar de Vitória. Dessa vez, não exatamente por uma escolha, mas por essas guinadas imprevistas que volta e meia reviram tudo. Eu não consigo deixar de pensar que aproveitei muito pouco. Queria ter experimentado mais, saído mais, explorado mais. Igualzinho todas as vezes que fui surpreendido pelos fins.

Sempre que escuto algum relato sobre estar perto da morte, é isso que se sobressai. Tudo o que poderia ter sido feito e não foi. Não ter tido coragem para ser quem gostaria de ser, não ter dedicado mais tempo às pessoas que ama, não expressar mais o que sente.

Tem esse engano, né? A gente acha que vai ter um depois. E, de depois em depois, a vida vai passando, o corpo vai mudando, os cabelos brancos aparecendo, a saúde complicando e, se nenhum acidente acontecer antes, perdemos a força até apagar.

Ok, pode soar um pouco dramático, mas numa esfera menor, é exatamente isso que acontece. Nada dura muito tempo.

O mais complicado não é nem aceitar. Muita gente aceita que tudo acaba e que, de uma hora pra outra, algum de nós não vai estar aqui. A questão é manter isso em vista. Entre um prazer e outro, eu esqueço. Essa informação se apaga de mim. Corta para o Luri distraído, fazendo tudo igual, sendo negligente, achando que tudo vai ser desse mesmo jeito pra sempre.

Mas hoje, não. Apaguei a desculpa perfeita e perguntei como fazia para retirar o ingresso, pedi o Uber e em poucos minutos estava a caminho. As luzes de Natal refletidas pela chuva empoçada no asfalto me chamaram atenção. Há anos eu não passo o final de ano aqui. Algumas ruas estão em reforma, vários locais que eu frequentava não existem mais, até a fachada do meu prédio está mudando. Tudo isso, de repente, salta aos meus olhos.

A morte dá significado e valor à vida, mesmo as pequenas e insignificantes. Quando a torneira quebra, percebemos como a danada era importante. O inconveniente da sua ausência grita. É uma pena que seja tão difícil entender isso enquanto ainda colhemos o benefício da sua existência.

Apesar de não ter ingresso e ter ficado em uma fila de espera, consegui um lugar muito bom. Quando a orquestra começa, eu me deixo absorver muito rápido. As primeiras peças são instrumentais. Não sei os nomes, mas não importa. Talvez, até seja bom não saber, assim, posso me envolver sem me preocupar com quem é o compositor, qual estilo, qual tom, etc. Fases difíceis nos transportam pra longe e a música é como um foguete. Por um instante, me pergunto se a música é suficiente para calar a incerteza. Talvez não, mas, por agora, eu escolho ouvir.

Ao ver a culminância de um espetáculo, raramente percebemos o tanto de tempo e esforço colocado ali. Essa combinação de energia, juventude, apoio da rede ao redor é tão rara, tão especial. É fantástico ver alguém que consegue dar fruição aos seus talentos e habilidades. Eu me arrepio com a expressividade impressa em cada nota, a fluidez dos vibratos, a potência com que ela suporta o ar. Minha amiga canta. Canta muito.

Lembro de uma música de Ednardo, chamada “Enquanto Engoma a Calça”, que diz: “Por que cantar parece com não morrer / é igual a não se esquecer / que a vida é que tem razão.”

Depois da apresentação, vejo que ela está ali, recebendo abraços e parabéns das pessoas. Ao me ver, ela acena e sai de onde está, toda saltitante. É uma alegria quando alguém fica feliz com a nossa presença. Conversamos, rimos e chega a hora de ir embora.

“Poxa, não sei quando a gente vai se ver de novo”, ela diz.

Nem eu.

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